A PREJUDICIALIDADE DE DIREITO COMUNITÁRIO NOS TRIBUNAIS SUPRANACIONAIS
SUMÁRIO. 1. O Mercosul e os
ordenamentos jurídicos de integração. 2.
Direito Internacional e Direito Comunitário.
3. A “soberania compartilhada”.
4. A jurisdição supranacional. 5.
O fenômeno jurídico da prejudicialidade.
6. As “ações” de Direito Comunitário.
7. O papel do juiz nacional como aplicador do Direito Comunitário.
8. O “reenvio prejudicial” como instrumento de integração entre a
jurisdição comunitária e as nacionais. 9.
Controle de constitucionalidade e controle de legalidade comunitária. 10.
Objeto do reenvio prejudicial: (a) generalidades.
11. Objeto do reenvio prejudicial: (b) questões de interpretação.
12. Objeto do reenvio prejudicial: [c] questões de validade.
13. Suscitação do incidente. 14.
Aspectos procedimentais. 15. A
sentença incidente. 16. Eficácia
da sentença: vinculação do juízo suscitante .
17. Eficácia da sentença: extensão e limitações. 18. Reenvio obrigatório
e reenvio facultativo. 19. Reenvio obrigatório e a “teoria do ato claro”.
20. Emprego abusivo. 21. Importância
do instituto.
1.
O Mercosul e os ordenamentos jurídicos de integração. A atualidade da discussão em torno do Mercado Comum do Sul
– Mercosul – põe em foco os problemas ligados ao ordenamento jurídico pelo
qual se deve reger a associação regional de países e especialmente, um pouco
mais além, a sua integração. Uma especialíssima atenção se precisa dar à
solução dos conflitos que inevitavelmente já estão surgindo e hão de surgir
entre esses Estados e entre os agentes econômicos em atuação no âmbito do
espaço geográfico integrando, ou entre uns e outros.
Valha
advertir que, diversamente do ocorrido com os tratados de Roma e subseqüentes,
relativos às comunidades econômicas européias, o Tratado de Assunção não
instituiu um mercado comum; antes e apenas definiu o propósito dos governos
signatários de virem a criá-lo no futuro.[1]
Se buscarmos uma imperfeita mas ilustrativa analogia com o Direito Privado, aí
se cogitou de uma promessa de contratar, não de um contrato. É possível, aliás,
que essa opção tenha seguido intencionalmente uma política de prudência,
inspirada pela preocupação em “não criar, desde logo, uma organização
internacional cujo peso estrutural fosse incompatível com o estágio das relações
de cooperação e integração entre os Estados signatários”.[2]
Os acordos e protocolos que a partir dele se firmaram, de resto, não avançaram
significativamente no que se refere à concretização desse objetivo. Importa
referir, igualmente, que o propósito declarado pelos contratantes não vai
muito além de uma união alfandegária – e que mesmo esse limitado e modesto
desiderato está ainda longe de ser alcançado.
Entretanto,
mesmo que a pretendida integração se mantenha restrita a tão acanhado alcance
– o que não é de esperar-se a médio prazo –, ainda assim será imprescindível
a adoção de mecanismos jurídicos
aptos a assegurar a estabilidade e a confiabilidade do sistema, seja do
ponto-de-vista dos governos, seja na ótica dos particulares envolvidos no
processo integratório. A instituição de uma união alfandegária supõe
normatização extremamente complexa, primeiro no âmbito interno do espaço
geográfico integrado, donde devem ser removidos todos os obstáculos que não
sejam estritamente tarifários; depois, no respeitante às relações externas
ao grupo, com Estados terceiros, aos quais todos os Estados membros terão de
dispensar tratamento aduaneiro uniformizado.
Ainda
nos limites dessa desambiciosa modalidade de integração, as oportunidades de
controvérsias e divergências entre os Estados membros e entre os agentes econômicos,
ou ainda entre estes e aqueles, são amplíssimas e variadas. Aplicação
diferenciada de tarifas, exata conceituação da distinção entre estas e
outras contribuições inexigíveis, interferência de regramentos pertinentes a
outros acordos internacionais de comércio (v.
g., ALADI, ALALC, ALCA etc.), definição de listas de exclusão de
produtos, embaraços burocráticos à livre circulação de bens (e, em etapa
ulterior, de pessoas e serviços), conciliação entre normas de tratados e o
direito local – é infindável o rol de situações capazes de gerar dúvidas
e litígios no âmbito que se pretende integrar.[3]
Seria
sumamente ingênuo supor que o mecanismo do tribunal arbitral ad
hoc – único instrumento de superação de controvérsias contemplado
pelos acordos do Mercosul, nomeadamente os protocolos de Brasília e de Ouro
Preto[4]
– possa bastar para acudir a essa avalancha de dissídios, inevitáveis a
partir do momento em que a integração (mesmo, ainda uma vez se insiste, nos
limites já analisados) passe um pouco além do plano das meras intenções. Aliás,
o que se está a afirmar nada tem de especulativo; apoia-se à concreta constatação
de emprego absolutamente inexpressivo e de todo frustrante dos mecanismos de
arbitramento, embora já se façam antigos os protocolos de Brasília e Ouro
Preto, nos quais se instituíram e detalharam os contornos do malogrado Tribunal
Arbitral. Do ponto de vista prático, ele se tem revelado absolutamente
inoperante.
Não
se está a afirmar, por certo, de modo genérico e absoluto, a inutilidade dos
mecanismos de arbitragem, certamente experimentados com sucesso nas relações
internacionais e talvez insubstituíveis em algumas de suas funções. A
arbitragem pode inclusive funcionar como um estágio de adaptação, de “acostumbramiento”[5] das soberanias à concepção
nova e talvez chocante de soberania compartilhada e de jurisdição comunitária.
Mesmo no quadro de uma ampla e avançada integração, as soluções arbitrais
podem ainda ter lugar.[6]
O que se trata de pôr a claro é a insuficiência e inadequação desses
mecanismos a partir de um certo grau de integração.
2. Direito Internacional e Direito Comunitário. Impõe-se, neste ponto, uma breve digressão sobre a necessidade de compreender-se com clareza a fundamental diferença entre o Direito Internacional clássico e a nova realidade do Direito Comunitário, formação inteiramente nova e impassível de submissão aos postulados daquele.[7] A incursão se faz necessária porque ainda é escassa a familiaridade de nossos juristas com os conceitos elaborados durante os últimos quarenta anos pelos especialistas europeus, Pierre Pescatore à frente de todos, sobretudo a partir da exemplar jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades Européias,[8] suficientes já para conferir autonomia à nova disciplina jurídica.As normas de Direito Comunitário não são regras de direito interno, certamente, mas também estão longe de ser simplesmente integrantes do Direito Internacional tal qual estamos habituados a tratá-lo. Como, há quase vinte anos, advertia Mauro Cappelletti, trata-se de uma realidade que, sem exagero algum, só pode ser qualificada como revolucionária, “un radical rompimiento com doctrinas políticas y jurídicas tenidas como fundamentales, una profunda transformación de instituciones constitucionales como los Parlamentos, y demás – lo que a nosotros aquí más directamente interesa – una nueva y extraordinariamente importante tarea de los jueces: la tarea, precisamente, de controlar la que propongo llamar la legitimidad (o validez) comunitaria de las leyes nacionales.”[9]
A
essa noção de internacionalidade
contrapõe-se a de supranacionalidade
inerente ao Direito Comunitário.[10] Já não se trata de
justapor vontades nacionais que se mantêm de todo autônomas, mas de realizar
algo como um desgaste recíproco entre elas, ou como a soma das várias parcelas
coincidentes de cada uma, para chegar-se à formação de uma vontade conjunta
que se sobreponha a todas as individuais, nos limites, é evidente, dos
objetivos comuns estabelecidos. Nessas coordenadas, a convenção supranacional
(mais do que meramente internacional!) impõe sua autoridade de imediato aos
governos e aos particulares na área geográfica integrada, independentemente de
recepção ou internalização. Mais: o ordenamento jurídico comunitário, daí
resultante, goza de supremacia em relação aos ordenamentos jurídicos
nacionais, de tal sorte que, no conflito eventual entre um e outro, há de
prevalecer necessariamente aquele. Pode-se ainda falar de soberania, mas não na
acepção tradicional: impõe-se admitir o conceito de “soberania
compartilhada”.
“A nuestro juicio un órgano
para ser considerado supra-nacional debería reunir dos condiciones.
La primera, estar integrado de
manera que sus miembros no representen a ningún Estado, que se encuentren
desvinculados de sus nacionalidades y que respondan nada más que a los
intereses comunitarios, sin recibir instrucciones de ningún Gobierno.
La segunda, tener la potestad
de dictar normas obligatorias para los estados miembros, cuya aplicación sea
inmediata y prevalente en los ordenamientos internos de cada uno de ellos.
Inmediata quiere decir que
dicha norma adquiere plena vigencia en los estados partes sin necesidad de ningún
trámite nacional para su `internación´.
Aplicación prevalente quiere
decir que se debe aplicar con preeminencia a qualquier norma nacional que la
contradiga, ya sea de fecha anterior o posterior.
Un órgano que tenga la
potestad de dictar normas que sean obligatorias para los Estados miembros, pero
que su integración sea intergobernamental, no reuniría, a nuestro juicio, la
característica de supranacionalidad, por cuanto sus miembros estarían actuando
precisamente en representación de sus gobiernos.
A la inversa, un órgano que se integre con miembros
que no representan a ningún Estado , pero que carece de potestad de dictar
normas obligatorias para ellos, no es tampoco supranacional.”[11]
Acha-se
aí traçada, com mão de mestre, a fundamental linha divisória entre associação
de Estados e integração de Estados. Ou, o que vem a ser o mesmo dito em outras
palavras, entre Direito Internacional e Direito Comunitário.[12]
3.
A “soberania compartilhada”. Posto isso, resultam claras as razões pelas quais os mecanismos da
arbitragem representam o único remédio possível para os conflitos
propriamente internacionais, mas revelam-se insuficientes para dirimir o
contencioso comunitário. O conceito clássico de soberania é incompatível com
a submissão de qualquer Estado à autoridade de algum órgão, jurisdicional ou
não, posicionado acima das nacionalidades.
Sequer se pode conceber, aliás, à luz daquele conceito, a existência
de um tal órgão. Pode haver, e certamente há, “tribunais” internacionais
a cuja mediação Estados participantes de um tratado, convenção ou organização
internacional se tenham comprometido a submeter determinados litígios, segundo
o modelo conhecido da Corte de Haia. Mas a sua atuação será sempre
arbitral e não jurisdicional, ainda
quando se trate de uma corte permanente e
não ad hoc.
Aliás,
é muito difundida entre os juristas a noção de que “a jurisdição é
atributo da soberania”.[13] Ora, sendo isso verdade,
e posto que inexistem organismos dotados de soberania acima ou para além do
Estado, conseqüência necessária é a impossibilidade de exercerem verdadeira
jurisdição essas Cortes. Não se acham elas investidas do poder de coerção
inerente à atividade propriamente jurisdicional;
suas decisões carecem da imperatividade que caracteriza o mandamento
judicial. Na hipótese de descumprimento, o tribunal arbitral não dispõe de
autoridade nem de meios para compelir à obediência o recalcitrante, que talvez
venha a sofrer sanções ou represálias, mas da parte dos demais governos
integrantes da organização, não da Corte.
O
mecanismo da integração supera o impasse. Embora possam subsistir dúvidas
sobre a mais exata explicação técnico-jurídica do fenômeno, tudo se passa
como se cada um dos Estados participantes tivesse renunciado a uma parcela de
sua soberania, transferindo-a ao Tribunal (como, de resto, a outros órgãos
comunitários), possibilitando que o somatório dessas parcelas resulte em
outorga de poder jurisdicional à Corte (assim como de outros atributos da
soberania aos parlamentos comunitários e aos órgãos executivos). O poder
exercido por esses entes – no que ora nos interessa, pelo Tribunal da
Comunidade – é supranacional, isso
significando que se põe acima de todas e de cada uma das individualidades
nacionais.
Mutatis mutandis, repete-se aqui, agora com respeito à jurisdição,
o fenômeno anteriormente analisado com referência à auto-aplicabilidade e à
supremacia do ordenamento jurídico comunitário. Se a incidência das regras
jurídicas supranacionais independe de recepção ou qualquer providência
similar no âmbito nacional, e prefere à das normas de direito interno, como
ficou visto, a existência de uma jurisdição também supranacional é inarredável
corolário. De resto, é conhecido o fenômeno de debilitação do Direito
Internacional clássico, precisamente em razão de sua incapacidade de
solucionar satisfatoriamente os contenciosos e de evitar a politização das
decisões que deveriam ser jurídicas.[14]
Precisamente
por tratar-se de uma formação nova, irredutível aos esquemas e conceitos
tradicionais com que se busca classificar a jurisdição, não têm logrado êxito
as tentativas de situar a Corte Supranacional (particularmente a de Luxemburgo,
modelo inescapável e ainda inigualado) em qualquer das categorias definidas
para o enquadramento dos órgãos jurisdicionais em geral. Ela não é uma corte
internacional, cujos traços fundamentais incluem a excepcionalidade e o caráter
facultativo de sua jurisdição. Talvez se aproxime de ser um órgão de jurisdição
constitucional, mas não no sentido usual da expressão, porque fundamentalmente
se cuida de aplicar tratados (base do ordenamento jurídico comunitário) e
confrontar com eles os demais regramentos derivados ou complementares e o
direito interno de cada Estado membro, não disposições constitucionais no
sentido próprio. Tampouco se afigura apropriado identificar uma jurisdição
administrativa, como igualmente foi sugerido, até porque isso implicaria
aproximá-la dos contenciosos administrativos do direito europeu continental e,
mesmo com as ressalvas que daí decorreriam, contemplar-se-ia uma parcela
pequena e pouco significativa do conjunto das atribuições de um tribunal
comunitário.[15]
As
várias propostas de enquadramento apenas põem em destaque ora uma, ora outra
das variadas competências de uma Corte comunitária, mas nenhuma delas leva em
conta a configuração absolutamente nova dessa modalidade de jurisdição, como
novo e absolutamente específico é o ordenamento jurídico a cuja aplicação
ela se volta. Assim, a Corte de Justiça de Luxemburgo e qualquer outra
subordinada ao seu modelo original é Corte “constitucional”, talvez
“federal”, na medida em que confronta as regras menores com a “constituição”
representada pelos tratados e coteja os próprios ordenamentos internos
nacionais com esse paradigma;[16] é órgão do
“contencioso administativo” quando examina litígios entre os entes
diretivos da Comunidade e seus funcionários; é “tribunal internacional”
quando identifica infrações ou descumprimentos por parte de Estados membros ao
estatuto comunitário—mas, exercendo essas competências (entre muitas outras,
de resto), desempenha seus misteres na perspectiva da teleologia comunitária,
aplicando um ordenamento jurídico que não se pode assimilar a qualquer das
categorias anteriormente conhecidas e exercendo uma jurisdição liberta do
conceito de soberania nacional.
Mais
ainda—e esse aspecto diz de perto com o objeto deste ensaio—uma corte
supranacional deve atuar sobretudo como órgão de integração entre os
ordenamentos jurídicos nacionais e o comunitário, cooperando e não competindo
com os juízos e tribunais de cada Estado membro, com os quais divide competência
funcional pela via do recurso ou reenvio prejudicial. Logo se há de ver que a
parcela certamente mais significativa do trabalho desempenhado pela Corte de
Luxemburgo está relacionada com essa cooperação judicial.
4.
A jurisdição supranacional. As dificuldades que vêm
de ser expostas podem conduzir a duvidar-se de que um tribunal supranacional
possa exercer verdadeira jurisdição e, por conseqüência, à solução
tentadoramente simples de concluir-se que as cortes dessa espécie desempenham
alguma outra sorte de atividade que não a jurisdicional. Entretanto, esse seria
outro fruto de uma visão preconceituosa do problema, ainda presa à
incapacidade de separar a idéia de jurisdição da concepção tradicional,
absoluta e incindível de soberania.
Na
verdade, na medida em que a jurisdição seja vista como poder, segundo o conceito
hoje dominante, a dificuldade apontada outra não é senão aquela mesma que os
juristas encontram para compreender a própria idéia de supranacionalidade.
Desde que se admita uma entidade colocada acima e fora dos governos, apta a
exercer autoridade sobre eles, o problema deixa de existir. No tribunal comunitário,
como nos demais órgãos de comando supranacionais, não existem “representações”
de cada um dos governos a ele submetidos, mas um ente no qual se reúnem as várias
parcelas de “soberanias” individuais de que os Estados partes abriram mão
para poder-se compor com elas o poder de que se acha
investido o Tribunal.[17]
Certamente
se pode discutir a extensão do conceito de jurisdição e a delimitação entre
a correspondente atividade e aquelas outras de caráter administrativo e
legislativo. Mas esse debate não faz mais do que reproduzir e ampliar aquele
que se trava no âmbito da teoria geral do processo com pertinência à jurisdição
“interna”, no seu conceito tradicional de “atributo da soberania”,
terreno ainda movediço e inseguro onde a doutrina continua a registrar
profundas dissensões. Os embaraços teóricos certamente existirão, por igual,
relativamente à concepção de jurisdição comunitária, mas não lhe são
específicos. No mais, assim como não seria concebível hoje um direito
nacional a que não correspondesse uma jurisdição que lhe assegure a
efetividade, de igual modo o direito
comunitário só é pensável na medida em que se admita uma jurisdição
igualmente comunitária que lhe dê a força de impor-se nas situações
conflitivas.[18]
Tal como ocorre no âmbito intranacional, a superação heterocompositiva dos
litígios de cunho jurídico exige uma substituição da atividade dos
interessados pela atuação de um terceiro desinteressado[19]
dotado, de resto, da aptidão para impor aos interessados, coercitivamente, a
autoridade do julgado.
Pode-se
encontrar na jurisprudência da própria Corte de Luxemburgo a enumeração das
características necessárias e suficientes para definir a jurisdicionalidade de
sua atuação: o assento legal de sua constituição, a permanência (em oposição
à transitoriedade dos tribunais arbitrais ad
hoc), a submissão a regras de procedimento em contraditório análogas àquelas
pelas quais se regula o funcionamento dos tribunais de direito comum (due
process of law), a sujeição obrigatória das partes ao julgado e a solução
das controvérsias mediante aplicação de regras jurídicas.[20]
Há,
por certo, uma importante peculiaridade da jurisdição comunitária, que convém
desde logo sublinhar, embora devamos retornar com maior vagar ao ponto: ela se
exercita não em substituição às jurisdições nacionais, mas em complementação
à atividade delas e em colaboração muito íntima com as mesmas. A maior
contribuição da Corte de Luxemburgo à formação do direito comunitário
europeu – mais do que qualquer outro, um ordenamento construído pela
jurisprudência – resultou precisamente dessa estreitíssima e constante
colaboração com o sistema judiciário nacional de cada um dos países membros,
da qual resultou não apenas a afirmação do direito supranacional, mas também
uma contribuição importante à evolução de alguns dos ordenamentos jurídicos
nacionais.
O
contencioso comunitário, de resto, pela natureza mesma do ordenamento jurídico
a cuja aplicação se volta, apresenta uma particularidade ausente da assim
chamada “jurisdição internacional”. É que ele se trava, muito freqüentemente,
entre particulares, nacionais do mesmo ou de diferentes países, ou entre eles e
governos, ou entre qualquer de tais entes e órgãos supranacionais. O modelo clássico
das cortes internacionais, fundamentalmente estruturado para dirimir conflitos
intergovernamentais, não está habilitado a absorver satisfatoriamente essa espécie
nova de demanda por jurisdição.
5.
O fenômeno jurídico da prejudicialidade.
O fenômeno da prejudicialidade, cuja importância em Direito Processual é bem
conhecida, tem sido amplamente
estudado pela doutrina, inclusive no Brasil.[21]
Rememorem-se algumas noções fundamentais.
Quando
uma determinada questão precede logicamente a uma outra, de tal modo que não
se pode chegar a esta sem passar por aquela, diz-se que se cuida de uma questão
prévia. De alguma forma, a resolução da primeira condiciona, ou subordina,
a resolução da segunda.
Dois podem ser os modos de influência da questão subordinante em
relação à subordinada: ela pode ser de tal natureza que, dependendo do modo
como seja solucionada, torne desnecessário, quando não impossível, o exame da
outra questão; pode igualmente suceder que, segundo o sentido em que seja
resolvida a subordinante, continue cabível e necessária a resolução da
subordinada, mas resulte, ao demais, predeterminado o conteúdo dessa resolução.
A primeira dessas classes é a das questões
preliminares (v. g., se o juiz acolhe a alegação de litispendência, já não
precisará – nem poderá – examinar o mérito);
a segunda é a das prejudiciais (assim,
quando o juiz, na ação de alimentos, conclui pela inexistência da alegada
relação de parentesco entre as partes, precisa ainda assim julgar o pedido
alimentar, mas necessariamente o fará no sentido da improcedência).
Desde
um ponto-de-vista estritamente lógico, portanto, a relação de
prejudicialidade consiste na influência por força da qual a questão
principal a ser decidida (em regra, aquela que constitui o objeto central do
pedido) tem sua resolução determinada previamente pela solução anteriormente
dada a uma outra. Os juristas estabelecem distinções entre esse conceito lógico
e o conceito estritamente jurídico de prejudicialidade, mais estreito, mas aqui
não se faz necessário esse grau de aprofundamento da análise, eis que o
problema discutido nessa perspectiva—o de ter ou não a questão subordinante
aptidão teórica para ser objeto de processo autônomo—carece de relevo nas
coordenadas do presente estudo.
É
da natureza da prejudicialidade, como decorre do próprio conceito sumariamente
exposto, que o iter lógico a ser
percorrido pelo juiz na formulação racional do julgado passe necessariamente
pelo exame da questão prévia, sem o que não estará logicamente habilitado a
enfrentar e solver a matéria prejudicada. Dito exame pode ter lugar no mesmo
processo em que se deverá examinar a questão subordinada (caso em que a
prejudicial é interna, qual seja a
referida no art. 469, III, do Código de Processo Civil) ou em outro feito
(sendo então a prejudicial externa, como
a contemplada entre as causas de suspensão do processo no art. 265, IV, a, do mesmo Código).
É a primeira dessas classes que interessa aos objetivos do presente ensaio.
Sendo
a prejudicial
interna, pode suceder
que sua resolução não caiba na competência do juiz do processo, mesmo que,
por hipótese, competente para o julgamento da questão principal. Para essa
emergência, há três soluções possíveis, de todas havendo exemplos no
direito comparado. A primeira
consiste em remeter-se o conhecimento de todo
o processo ao juiz detentor da competência para a prejudicial, que se
prorroga para alcançar também a prejudicada. A segunda é a que atribui ao próprio
juiz da causa a resolução da prejudicial, desde que incidenter tantum, sem força de coisa julgada. A terceira, que aqui
mais de perto nos interessa, implica cisão do julgamento: o exame da questão
prejudicial é remetido ao juiz detentor da competência exclusiva para a matéria
envolvida nesse julgamento incidental, retornando o processo, a seguir, ao juízo
de origem para a decisão da questão subordinada, que necessariamente seguirá,
como é óbvio, o que se houver julgado no incidente. Vale dizer, o juízo que o
suscitou fica vinculado pela solução que lhe haja dado o outro órgão
jurisdicional, e deste receberá pronto um dos elos da cadeia lógica em que
consistirá a fundamentação do julgado. É
o que se passa, entre nós, quando levantada questão de inconstitucionalidade
de lei ou outro ato normativo no âmbito de um órgão fracionário de um
tribunal: pertencendo exclusivamente ao plenário, nos colegiados, a competência
para declarar a inconstitucionalidade, ainda que a título de controle difuso, o
órgão menor tem de sustar o julgamento para encaminhar ao pleno o exame da
questão constitucional; decidida esta, os autos retornam ao órgão de origem
para complementar o julgamento, com aplicação, naturalmente obrigatória, do
que se houver decidido no incidente (arts. 480 e segs. do CPC).[22]
Situação similar ocorre no assim chamado incidente de uniformização de
jurisprudência: o órgão jurisdicional de menor hierarquia suspende o
julgamento e encaminha o exame da questão incidental ao órgão superior,
proferindo, depois de solvido o incidente, o julgamento propriamente dito,
necessariamente submisso àquela decisão (CPC, arts. 476 e segs.).[23]
Em qualquer dessas duas situações, o julgamento é per saltum e resulta em decisão subjetivamente complexa.[24]
Essa técnica de fracionamento da competência jurisdicional em razão de
prejudicialidade tem especial interesse para o tema que ora nos ocupa, como logo
se há de ver.
6.
As “ações” de Direito Comunitário. Os modelos obrigatórios de jurisdição integrada (comunitária)
são o já antigo Tribunal de Luxemburgo (das Comunidades Européias) e o menos
conhecido porém mais próximo Tribunal de Quito (do Tratado de Cartagena, também
conhecido como Pacto Andino). Ambos, aliás, muito semelhantes entre si em
estrutura, funcionamento e competência, já que evidentemente moldado este mais
recente sobre aquele mais
experimentado.[25] Caso se tenha de pensar a
sério na instituição de um Tribunal do Mercosul, a experiência mundial não
indica outros padrões utilizáveis como ponto de partida.
Verdade
é que essa perspectiva não se afigura muito promissora, pelo menos a curto
prazo, sobretudo em consideração da conhecida posição do governo brasileiro
sobre o tema, francamente oposta à idéia de um tribunal supranacional por
alegadas (conquanto discutíveis) razões de ordem constitucional interna. Ao
ensejo da reunião de Ouro Preto do principal organismo diretivo do Tratado de
Assunção, em 1991, a delegação uruguaia compareceu com proposta excelente de
criação de uma Corte supranacional, mas a firme posição contrária do Brasil
e o baixo grau de definição dos demais parceiros inviabilizou qualquer avanço
nesse rumo.[26]
Como
quer que seja, parece claro que a fundação de um órgão judicial desse tipo
(mais ou menos semelhante aos modelos apontados, não importa) é apenas uma
questão de tempo, supondo-se que os propósitos de integração definidos em
Assunção e reafirmados em documentos posteriores devam efetivamente progredir
e alcançar plena realização. Como já ficou insistentemente assinalado, um
mecanismo dessa ordem é imprescindível à consecução dos objetivos
integracionistas balizados, mesmo em seu mais modesto estágio e no âmbito do
mais limitado objetivo.
Analisemos,
pois (postos de lado os aspectos meramente estruturais, por secundários e
contingentes), o modo de funcionamento dos tribunais que poderiam servir de
paradigma básico ao do Mercosul.
Desconsiderados
um maior detalhamento e as diferenças de menor relevo, poderiam ser
identificados três principais tipos de “ações” admissíveis tanto no
Tribunal de Luxemburgo quanto no andino: a “ação de descumprimento”, a
“ação de nulidade” e o “reenvio
prejudicial”. Existem ainda alguns outros remédios processuais, entre eles um
de alta incidência estatística mas de nula importância prática nas
coordenadas deste estudo, que vem a ser a vasta gama das reclamações propostas
contra os órgãos comunitários por seus empregados.[27]
As
ações de descumprimento prestam-se a obter da Corte supranacional a declaração
de que algum dos governos membros faltou a qualquer dos deveres impostos pelo
ordenamento jurídico da comunidade, com
a decorrente desconstituição do ato lesivo ou ordem de suprimento da omissão
constatada. É, por excelência, instrumento de garantia de aplicação efetiva
das normas dos tratados e demais acordos ou regulamentos emanados dos focos
legiferantes comunitários, com a correspondente legitimação ativa atribuída
aos diversos governos partes e aos órgãos executivos da comunidade e a
legitimação passiva exclusivamente aos Estados membros. Destina-se, assim, a
coibir infrações cometidas por governos locais ao ordenamento jurídico da
comunidade.[28]
Com
aquelas ações guarda alguma semelhança a assim chamada “ação de
nulidade”, com a peculiaridade de voltar-se especificamente contra um
determinado ato normativo, nacional ou internacional (v.
g., tratado entre Estado membro e Estado terceiro, ou mesmo entre diferentes
Estados membros), cuja invalidação se postula ao tribunal comunitário. Para
ilustrar com um símile bem conhecido entre nós, se bem que não de todo exato,
pode-se comparar o remédio à nossa ação direta declaratória da
inconstitucionalidade de lei estadual em face da Carta Magna federal: aqui,
confere-se a norma editada pelo Estado federado com as disposições do Pacto
Federativo; lá, o cotejo se faz entre a regra de direito nacional e o
ordenamento jurídico supranacional. Em qualquer dos casos, constatada a
incompatibilidade, a norma questionada tem de ser suprimida do sistema jurídico
a que pertencia.
Resta
o reenvio prejudicial, ao qual direcionamos preferencialmente nossa atenção no
momento.[29]
7.
O papel do juiz nacional como aplicador do Direito Comunitário. Não apenas por razões de acatamento e homenagem ao
arraigado e sensível conceito de soberania nacional, mas também por outras a
serem logo analisadas, é de todo conveniente e desejável que, na medida do
possível e mesmo no espaço geográfico abrangido pela integração, e ainda
quando se cuide da aplicação das
regras do ordenamento jurídico comunitário, o juiz da causa seja o juiz
nacional. A menos que se trate de litígio entre Estados membros, ou entre algum
destes e os organismos da comunidade, é perfeitamente possível e sobretudo
recomendável que a jurisdição comum, isto é, a nacional, assuma a tarefa de
dirimir a controvérsia, observadas as regras processuais ordinárias sobre
competência territorial, material e funcional. À já assinalada conveniência
de respeitar-se a soberania de cada Estado membro, e portanto a jurisdição que
lhe é própria, agregam-se vantagens práticas importantes, como a maior
comodidade dos jurisdicionados, a facilidade de seu acesso à Justiça e até
mesmo o grau de confiança presumivelmente maior que os litigantes depositarão
na estrutura judiciária de seu próprio país, em comparação com qualquer
outra. Seria, de resto, extremamente difícil e insuportavelmente onerosa a
disseminação de unidades jurisdicionais comunitárias por toda a vastidão do
território integrado, duplicando o vasto conjunto das organizações judiciárias
nacionais, já de si caras, volumosas e pesadas, assim como, na outra ponta do
dilema, seria sumamente frustrante para o jurisdicionado obrigá-lo a
deslocar-se em busca de justiça a um único ou a alguns escassos pontos onde
tivessem sede as cortes supranacionais. Tenha-se em conta, mais, que os litígios
submetidos a julgamento mui freqüentemente hão de envolver também a aplicação de normas de direito local, cujo exame pelos
tribunais comunitários seria, do ponto de vista técnico e do político,
extremamente problemático e, nessa hipótese sim, indefensável à luz do
conceito clássico de soberania nacional. Pelas razões assim brevemente
sumariadas – e muito longe de esgotadas – o juiz preferencial do litígio,
sem embargo de que nele se envolvam regras do ordenamento comunitário, há de
ser o juge de terre, identificado
segundo os critérios de direito processual comum.[30]
Posto
isso, faz-se imprescindível considerar, por outro lado, que os ditames do
ordenamento jurídico comunitário não podem, sob pena de enfraquecer-se,
desacreditar-se e definhar até a absoluta inutilidade, permanecer à mercê da
eventualidade de caprichos hermenêuticos, vacilações interpretativas,
contingenciamentos locais e indesejáveis mas possíveis tendências
nacionalistas de cada juiz nacional. A imaginar-se um ordenamento normativo
supranacional que não guarde impecável uniformidade e coerência na interpretação
e aplicação, preferível seria renunciar-se a
priori a toda veleidade de integração jurídica.[31]
Afirmado o princípio da supremacia do direito supranacional sobre o direito
local, resulta imprescindível, para que dito princípio realmente valha, a
identidade invariável das suas regras onde quer que se tenham de aplicar. A
possibilidade de oscilações exegéticas transformaria o corpo supranacional de
normas em melancólico quadro de recomendações dirigidas à boa-vontade dos
governos nacionais e de seus tribunais, ou em singela e platônica formulação
acadêmica. O que nos levaria de volta aos insuperáveis impasses do Direito
Internacional clássico.[32]
A conclusão a extrair-se é uma só: onde quer que exista um ordenamento jurídico
supranacional, há de fazer-se indispensável a presença de um órgão
julgador, igualmente supranacional, que o aplique.
As
duas conclusões estabelecidas podem parecer à primeira vista inconciliáveis.
De um lado, temos que, mesmo nos Estados submetidos a uma ordem jurídica
supranacional e quanto aos conflitos que envolvam sua aplicação, o juiz que
deles conhecerá é freqüentemente o juiz nacional. De outra banda, afirmamos
que o ordenamento jurídico supranacional deve necessariamente conter um sistema
judicial voltado para sua aplicação
uniforme. Precisamente para a ultrapassagem dessa contradição aparentemente
invencível foi concebido um dos
mais engenhosos e produtivos institutos jurídicos baseados no conceito de
prejudicialidade.
8.
O reenvio prejudicial: linha gerais. Conquanto por vezes denominado “recurso
prejudicial”[33] – convém que desde
logo se esclareça – o reenvio não é um “recurso” no sentido, entre nós
usual, de instrumento voltado à busca de um rejulgamento da causa ou reapreciação
de um decisório judicial. “Recurso” significa aí remédio
jurídico-processual, sem envolver a idéia de duplo grau de jurisdição ou
o pressuposto da existência de uma decisão a ser impugnada—tal como o termo
por vezes se emprega na doutrina européia. É, mais precisamente, um expediente
processual do gênero incidente[34],
a acarretar um fracionamento do ato de julgar entre diferentes esferas
competenciais – à maneira, como já ficou referido, do incidente de inconstitucionalidade do direito brasileiro e de
quantos outros conheçam o controle concentrado da constitucionalidade das leis.[35]
Mesmo que pouco familiar à nossa doutrina, portanto, o nome “reenvio
prejudicial” é preferível.
Quando
submetida a causa ao juiz nacional competente segundo as regras de direito comum
– que há de ser, como já ficou visto, o juiz preferencialmente competente
também para a aplicação do direito comunitário – constata ele, por hipótese,
a presença de uma questão envolvendo a interpretação (ou, no caso europeu, a
interpretação ou a validade)[36]
de uma disposição de direito supranacional. Em tal emergência, ele pode (ou
deve) remeter o exame dessa questão – e só dela! – à Corte supranacional,
que formulará a interpretação correta do texto normativo comunitário (ou,
sendo esse o caso, decidirá de sua validade) e devolverá o processo ao juízo
de origem para aí ser julgado o meritum
causae – vinculado o juiz nacional, por evidente, ao que tenha sido
decidido em sede de “recurso prejudicial”.
Há
casos – os de envio facultativo – em que a medida pode ser adotada a
requerimento de parte ou ex officio.
Outros há, entretanto, em que se faz obrigatória para o juiz a transferência
da questão à Corte supranacional. O critério é o da recorribilidade da decisão
a ser proferida pelo juiz ou tribunal nacional: sendo ela recorrível, a remessa
é facultativa; se, ao contrário, o julgado a ser proferido não comporta
recurso, a submissão da questão prejudicial ao tribunal comunitário é
imperativa. Não ocorrendo a remessa, no caso de ser ela facultativa, é óbvia
a necessidade em que se verá o juiz ou tribunal de solucionar a questão prévia,
como impõe a natureza lógica da prejudicialidade, mas só o fará incidenter
tantum, sem autoridade de coisa julgada.[37]
A
lógica do sistema é simples. Nenhuma sentença irrecorrível
poderá o juiz nacional proferir tendo como pressuposto uma resolução por ele
próprio estabelecida relativamente à interpretação (ou, sendo caso, à
validade) da norma de direito comunitário; sendo, entretanto, passível de
impugnação recursal a decisão que dele se espera, haverá ainda uma
oportunidade futura para que, ao ensejo do exame do recurso, o juízo ad quem submeta à
corte supranacional o deslinde da questão subordinante. Daí o caráter
facultativo, em tal hipótese, da provocação ao tribunal comunitário.
Consabidamente,
o problema da suspensão ou não do julgamento principal em razão da
prejudicialidade tem sido particularmente valorizado pela doutrina, sobretudo a
italiana entre nós mais difundida, a ponto de se cogitar de uma classificação
das questões prévias baseada nesse critério. Na verdade, a conveniência de
suspender-se a decisão subordinada atende a considerações de política
legislativa que não se ligam doutrinariamente ao conceito e à natureza da
questão prejudicial.[38]
No particular, o modelo do Tribunal de Luxemburgo opta pela suspensão sempre
obrigatória do processo no juízo nacional de origem, enquanto se aguarda a
resolução do incidente prejudicial. Já o Tribunal do Pacto Andino apresenta
solução diferenciada e deveras interessante: a suspensão do processo há de
ocorrer quando o envio seja obrigatório, caso em que também compulsória será
a suspensão. Se o juiz nacional, ao contrário, tem a mera faculdade de invocar
a prejudicialidade (porque recorrível em tese a sentença que vai proferir),
permanecendo livre para o exame incidenter
tantum da questão de direito supranacional, não necessita nem pode
suspender o processo.[39]
9.
Controle de constitucionalidade e controle de legalidade
comunitária. Resulta desde logo muito visível a proximidade
entre o reenvio prejudicial de direito comunitário e o nosso conhecido
incidente de inconstitucionalidade, como, aliás, de passagem, já puséramos em
foco.[40]
Baseiam-se um e outro no princípio segundo o qual a hierarquia entre normas
deve ser assegurada na via judicial, de tal sorte que a incidência da regra
superior conduza à supressão (controle concentrado) ou pelo menos à não-aplicação
ao caso concreto (controle difuso) daquela de menor escalão com ela conflitante
ou incompatível. Também já ficou registrado, outrossim, que se trata, ainda
assim, de remédios processuais diferentes e inconfundíveis, sem embargo dos
pontos comuns.[41]
Aliás, as características próprias e peculiaríssimas da jurisdição
supranacional são suficientes para diferenciar drasticamente toda a sua atuação
daquela dos tribunais nacionais.
Sem
embargo das diferenças, é importante para o jurista sul-americano, preocupado
com o futuro do Mercosul e de seu ordenamento jurídico, ter presente uma
constatação que o exemplo das comunidades européias pôs em relevo. A cultura
jurídica nacional de cada Estado integrante da comunidade, no que diz respeito
à atribuição ou não aos juízes da faculdade de avaliar a própria lei em si
mesma, confrontando-a com um estrato normativo superior, tem fundamental importância
na aceitação do ordenamento jurídico supranacional. Onde o controle de
constitucionalidade das leis é visto com naturalidade, por já incorporado à
cultura nacional e à praxis dos
tribunais, mais fácil e natural se faz a aceitação do controle de legalidade
comunitária, porque já relativizada a autoridade da lei, assimilada a noção
de não ser o juiz escravo dela e quebrado o tabu da onipotência dos
parlamentos. Trata-se de uma ampliação, ou de uma nova configuração de um
instituto cuja inspiração e razão de ser acham-se já perfeitamente
compreendidas e assimiladas. Ao revés,
nos países cuja tradição jurídica cultiva o fetichismo da lei e proíbe ao
juiz questioná-la em circunstância alguma, a admissão da novidade enfrenta
resistências muito mais severas: a mais de postular-se a subordinação da lei
a uma outra pauta normativa (ao modo do formidable
problème do controle de constitucionalidade), pede-se ao jurista, mais, que se afeiçoe à idéia de ser esse
cotejo confiado não apenas aos juízes, mas a juízes não-nacionais. No
particular, os cultores brasileiros do Direito e os próprios operadores do
processo, amplamente familiarizados com as práticas judiciais de controle da
constitucionalidade das leis e demais atos normativos, acham-se em posição
vantajosa no atinente à capacidade de absorção da técnica da
prejudicialidade de direito supranacional.
Em
conhecida e preciosa análise das profundas diferenças entre a mentalidade jurídica
de seu país, infensa ao controle jurisdicional de constitucionalidade, e a
predominante na Itália e na Alemanha, um ilustre jurista francês, com a
autoridade advinda de um longo exercício profissional em sua pátria seguido de
uma experiência como juiz da Corte de Luxemburgo, desvenda com exemplar lucidez
as razões pelas quais a jurisdição comunitária é muito menos conhecida,
prestigiada e respeitada em França do que naqueles outros países. É que a
inexistência de uma tradição de controle jurisdicional de constitucionalidade
e a entranhada noção de respeito fetichista à lei por parte do juiz fazem
parecer pouco menos do que monstruosa qualquer sugestão de autorizar-se o órgão
jurisdicional a confrontar a lei com qualquer outra fonte normativa—constituição,
tratados, princípios gerais de Direito ou, a
fortiori, um ordenamento jurídico supranacional. Ao revés, na visão do
jurista alemão ou italiano, iluminada pela estrutura constitucional instalada
após a Segunda Guerra Mundial (e mais recentemente seguida por Espanha e
Portugal), é perfeitamente natural que, ao modo do controle jurisdicional de
constitucionalidade no plano interno, aceite-se um mecanismo semelhante de
cotejo do direito nacional com o comunitário, para assegurar-se a primazia
deste.[42]
Uma
outra observação se faz oportuna relativamente ao tema. O controle
jurisdicional de constitucionalidade (no plano do direito interno) e o da
“legalidade comunitária” (na órbita do direito supranacional) podem
perfeitamente coexistir com respeito à mesma regra jurídica. Isto é, a
submissão da questão prejudicial de direito comunitário ao tribunal
competente, pela via do recurso prejudicial, não afasta nem embaraça a provocação,
junto à corte constitucional nacional ou equivalente, de sentença incidente
sobre a conformidade ou não da mesma norma ao texto constitucional,
concomitante ou sucessivamente. Na verdade, as duas questões são distintas e
inconfundíveis, pois o confronto que se faz é, na primeira sede, com as regras
de direito comunitário e, na segunda, com aquelas de direito constitucional
interno, mesmo que, em um e outro caso, se esteja a alegar quebra de direitos
fundamentais – que tanto podem estar assegurados na Constituição nacional
quanto no direito supranacional, mas não necessariamente em termos idênticos.
O exame das duas postulações à luz do princípio da tríplice identidade pode
revelar uma clara diferença. Mais complexo é o problema quando a regra
questionada é, ela própria, de direito comunitário. O assunto causou alguma
perplexidade e embaraço entre os juristas por ocasião do célebre e muitas
vezes citado caso da Dame Hauer,
porque se indagou pelas duas vias, sucessivamente, da conformidade de
determinada regra de direito supranacional às disposições de maior hierarquia
do mesmo direito comunitário e às
constitucionais internas sobre direitos fundamentais.[43]
Segundo a doutrina consagrada pela Corte de Luxemburgo em vários julgados, e
longamente exposta na já mencionada sentença Simenthal,
a prevalência do direito comunitário sobre o local é absoluta, mesmo quando
se cuide de normas constitucionais; sendo assim, a dúvida sobre a conformidade
entre a regra questionada e os direitos fundamentais estaria definitivamente
dirimida pela resposta positiva da corte supranacional, e não se deveria
admitir a suscitação ulterior da questão de constitucionalidade na órbita do
direito interno.
10.
Objeto do reenvio prejudicial: (a)
generalidades.
É importante ter presente que o direito comunitário pode ser seccionado em
dois campos perfeitamente distintos quanto às suas fontes: os atos
instituidores da comunidade, que são os tratados, e o denominado “direito
derivado”, composto por toda a gama de normas, regulamentos e diretivas que os
complementam e detalham. Para traçar um paralelo com o direito interno, pode-se
afirmar que aquela primeira categoria corresponde à constituição e a segunda
ao conjunto das regras infraconstitucionais.[44]Entre
estas, atenção especial merece, por sua peculiaridade, a diretiva, que não tem, em princípio, aplicação imediata e
direta, por expressar uma determinação aos governos no sentido de que a
legislação de cada um, pertinente a dado tema, se ajuste a determinados parâmetros
ou exigências mínimas fixados por aquela. Em regra, estipula-se um prazo para
a adaptação da lei nacional, mas o legislador permanece livre para dispor
sobre qualquer aspecto não delimitado pela diretiva.
Como
já ficou dito en passant, o sistema
comunitário europeu difere do instituído pelo Tratado de Cartagena no atinente
ao objeto do reenvio prejudicial. Lá, tanto as questões de interpretação de qualquer das normas quanto as relacionadas à validade
das regras menores em face das “constitucionais” podem ser levadas por essa
via ao tribunal comunitário; aqui, somente a interpretação pode ser objeto do
recurso prejudicial, reservado o possível exame judicial da validade às ações
de incumprimento e de nulidade. A verdade, contudo, é que, à parte as intrínsecas
e conhecidas dificuldades teóricas em separar as duas categorias, nem sempre é
tão fácil, na prática, distinguir-se a discussão da validade daquela da
interpretação. Sempre pode ocorrer que o juiz chamado a interpretar constate ictu oculli a invalidade da norma, no sentido de sua inconformidade
à regra de maior hierarquia.[45]
Outro ponto a considerar é que, a depender de como se interprete, pode resultar
prejudicada a questão da validade, tal como ocorre no exame judicial da
constitucionalidade das leis: só se pronuncia a inconstitucionalidade quando a
norma impugnada não comporte alguma interpretação que a faça compatível com
o texto superior. O mesmo pode ocorrer no confronto entre norma de direito
derivado comunitário e norma institucional do mesmo ordenamento.[46]
Por via transversa, portanto, dada essa interpenetração das duas classes de
questões e a dificuldade que, na prática, pode ocorrer em extremá-las, a análise
das de validade pode igualmente inserir-se na competência do Tribunal de Quito.
Senão por isso, por ser o sistema mais abrangente, o do Tribunal das
Comunidades Européias parece ser o modelo preferencial, digno de mais demorada
análise.
Como
quer que seja, importa ter sempre em mente que o objeto do remédio jurídico-processual
sob exame há de ser necessariamente uma questão prejudicial, envolvendo seja a
interpretação, seja a legitimidade
comunitária de uma regra de direito supranacional. A idéia de questão supõe a existência de controvérsia ou pelo menos dúvida
que o juiz deva resolver para poder proferir o julgamento. A noção de prejudicialidade,
a sua vez, qualifica essa questão como logicamente antecedente à resolução
daquela outra direta e imediatamente colocada pelas partes como res
judicanda, guardando com esta uma relação de conexidade especial (dita genética)
de tal ordem que uma resolução, dependendo do sentido ao qual se volte,
condiciona e predetermina o conteúdo da outra.
Não
existem limitações fixadas a priori,
em um sistema ou no outro, quanto ao campo do direito em que o fenômeno da
prejudicialidade de direito comunitário pode manifestar-se. Como oportunamente
se há de ver melhor, o instituto surpreendeu seus próprios criadores e
operadores com uma insuspeitada capacidade de expansão e de adaptação, a
ponto de ser utilizado no âmbito da jurisdição penal, que à primeira vista
poderia parecer infenso à sua aplicação.[47]
11.
Objeto
do recurso prejudicial: (b) questões
de interpretação.
Relativamente às questões de interpretação, cabe indagar de que
interpretação se cuida. O Tribunal das Comunidades Européias sempre se
absteve de aprofundar no plano teórico o debate em torno dos métodos
interpretativos, mas revela nítida preferência pelas vias sistemática e
sobretudo teleológica, orientando-se, de resto, pela sempre presente consideração
da especificidade do direito comunitário.[48]
Da inocultada preferência pelo método teleológico, associada à preocupação
constante com a prevalência do direito comunitário e, dentro dele, com o
primado das “normas constitucionais comunitárias” representadas pelos
tratados constitutivos, dá testemunho a clara adoção da “teoria dos poderes
implícitos”, segundo a qual as competências atribuídas às comunidades não
são apenas aquelas expressas nos
textos, mas também todas as que se façam necessárias para a realização dos
seus objetivos próprios.[49] Seguindo a mesma linha, o Tribunal do Pacto Andino proclamou que
“...corresponde el empleo preferente de los métodos sistemático y de
interpretación teleológica, sin dejar de utilizar, si fuese el caso, los demás
métodos universalmente admitidos, con la advertencia de que el método teleológico,
que adquiere conotación especial en el derecho comunitario como normativa de un
proceso de realizaciones conjuntas para el logro de um objetivo común, es el
que mejor se adapta a la naturaleza propia de la decisión prejudicial en cuanto
tiene en cuenta ‘el objeto y fin’ de la norma, o sea, en último término,
el proceso de integración...”[50]
As
questões prejudiciais de interpretação tanto podem dizer respeito aos
tratados, núcleo por assim dizer constitucional
das comunidades, quanto ao chamado direito derivado, vale dizer, regulamentos,
decisões e diretivas que os complementam e explicitam. Já a questão de
validade limita-se ao direito derivado, pois é precisamente em cotejo com os
tratados (direito primário, que vimos
tomando a liberdade de chamar de “constitucional”) que precisa ser aferida a
legitimidade ou validez de tais regras de menor hierarquia.
A
esse conceito de direito comunitário derivado o Tribunal de Luxemburgo tende a
dar um elastério notável. Aí se têm incluído, por exemplo, os acordos
internacionais firmados pelas próprias Comunidades no exercício da competência
que lhes cabe – e com indiscutível acerto, pois, eles se inserem ao natural
na categoria dos “atos adotados pelas instituições da Comunidade” a que se
refere o art. 177 do Tratado CEE. Tanto quanto qualquer outra normativa emanada
dos organismos comunitários, também as desta ordem podem ser objeto de dúvidas
quanto à sua interpretação e conformidade aos tratados, e relativamente a
elas ocorre o mesmo interesse em que a sua significação e aplicação guardem
rigorosa uniformidade no âmbito comunitário,[51]
embora seja intuitivo que a autoridade das decisões da Corte, em tal caso,
restringe-se aos países membros, não se alargando aos Estados terceiros (no
conceito comunitário) participantes dos acordos questionados.
O
que já ficou dito sobre os métodos de interpretação seguidos relativamente
às questões prejudiciais impõe também a admissibilidade do reenvio com
pertinência a princípios não escritos mas inerentes ao direito comunitário.
Assim, o remédio processual pode ser utilizado a fim de que o tribunal
supranacional defina critérios para preenchimento de lacunas, assim como para
conduzi-lo à explicitação daqueles princípios. Particularmente no alusivo
aos direitos fundamentais – cuja proteção e defesa os sistemas de direito
comunitário tomam a si com especial empenho – o recurso prejudicial tem
servido de canal para a revelação de princípios não escritos e para a
integração das normativas incompletas ou omissas.[52]
12.
Objeto do reenvio prejudicial: (c) questões de validade.
Também no que diz respeito ao juízo prejudicial de validade das normas (e
agora passamos a falar apenas das Comunidades Européias, dado que o Pacto de
Cartagena não o contempla como objeto de reenvio), tem-se manifestado a mesma
tendência claramente ampliativa. Assim é que a legitimidade de um ato de
direito derivado pode ser questionada não somente à luz dos textos
fundamentais, mas igualmente em razão de contraste com os princípios gerais de
direito, com regras de direito internacional a que todos os estados membros
estejam submetidos ou ainda com princípios constitucionais presentes no
ordenamento jurídico interno de todos eles.[53]
Apenas exemplificativamente: a Corte invalidou em sede prejudicial uma perda de
fiança imposta em desacordo com o princípio da proporcionalidade;[54]
impugnou a validez de um regulamento comunitário em face da garantia dos
direitos fundamentais, que disse fazer parte integrante dos princípios gerais
de direito que lhe cabe garantir;[55]
censurou a regra comunitária em razão de sua incompatibilidade com outras, de
direito internacional, a cujo cumprimento estavam obrigados todos os Estados
partes.[56]
Uma
particularidade revelada pela prática do reenvio prejudicial envolvendo questão
de validade merece especial atenção. É que seu objeto, observado sem preocupação
de contexto, pode apresentar sobreposição com o da “ação de nulidade”
regulada pelo art. 173 do Tratado CEE. Com efeito, o direito comunitário
contempla um remédio processual específico, posto à disposição dos Estados
membros e de pelo menos um dos órgãos diretores da comunidade, voltado para a
declaração de nulidade ou anulação de atos eventualmente praticados por
governos ou pela Comissão em desconformidade aos ditames dos tratados e demais
normativas comunitárias. Poderia parecer, então, que o emprego do recurso
prejudicial invadiria a área de atuação jurisdicional reservada a essa outra
“ação”. Na verdade, trata-se de um daqueles casos, bem conhecidos dos
processualistas, em que o mesmo resultado pode ser procurado em juízo por
diferentes caminhos. O próprio Tribunal de Luxemburgo identificou essa coincidência
e nela não viu anomalia alguma; ao contrário, levou mais adiante a idéia e
proclamou que, mesmo na pendência de uma ação de nulidade versando o mesmo
tema, admite-se o reenvio prejudicial destinado a orientar o juiz nacional sobre
a legitimidade comunitária da regra já submetida ao crivo
jurisdicional em outra sede.[57]
Foi, aliás, ainda mais longe o Tribunal: pacificou o entendimento segundo o
qual a autorização contida no art. 174, alínea 2, do Tratado CEE, no sentido
de permitir que a declaração de invalidade de uma norma (no âmbito da ação
específica) seja limitada no tempo a fim de preservar situações consolidadas,
pode ser estendida à declaração incidental de ilegitimidade, proferida na via
prejudicial.[58] Em termos práticos, isso
quer dizer que também em sede de recurso prejudicial a Corte, ao invalidar
determinada regra jurídica comunitária, pode definir o momento a partir do
qual opera a eficácia sentencial nulificante, preservando os efeitos até então
produzidos. Essa é, aliás, uma questão importantíssima, a cuja análise será
necessário retornar adiante em outra perspectiva (infra,
no 17).
13. Suscitação do incidente.
Como ordinariamente ocorre com respeito a qualquer questão posta ante o juiz, a
prejudicial de direito comunitário é suscitada, em regra, por uma das partes,
que invoca na defesa de seus interesses determinada disposição de direito
supranacional, ou determinada interpretação dela, que pretende ver aplicada
aos fatos do litígio concretamente posto ou que, ao contrário, sustenta
inaplicável aos mesmos. Rigorosamente, desde esse momento está submetida ao
juiz nacional a questão, que, se pertinente, deverá ser enviada ao exame do órgão
jurisdicional competente, a saber, o tribunal supranacional. Não é impossível
que ambas as partes o requeiram conjuntamente. O processamento do incidente, a
ser seguido no juízo de origem, é o que se ache prescrito pela lei processual
interna, inclusive no atinente à necessidade ou não de oitiva da contraparte,
do Ministério Público, etc.
Não
se exclui que o próprio juiz tome ex
officio a iniciativa de remeter o exame da questão, por ele identificada
independentemente de provocação, ao tribunal comunitário. Não se há de
olvidar, com relação ao ponto, que o juiz nacional, tendo a seu cargo a tarefa
de solver o litígio, é o primeiro e maior interessado em ver dirimidas
eventuais dúvidas que lhe ocorram—mesmo no silêncio dos litigantes – sobre
a interpretação ou validade de regras de direito comunitário a seu ver
envolvidas no julgamento a ser proferido. Mais do que às partes, importa ao
juiz nacional obter a cooperação do órgão jurisdicional comunitário,
segundo a partilha de competências que o sistema supõe, para poder
desincumbir-se de sua tarefa. A omissão das partes na provocação do
incidente, ou até mesmo na chamada à cena judiciária da regra de direito
supranacional, não pode impedir o juiz de buscar aquela cooperação. Trata-se,
a rigor, de uma aplicação do princípio iura novit curia: certo que se trata de matéria estritamente de
direito, a iniciativa das partes é dispensável. Mais, pode-se ver aí um imperativo de lógica elementar: se ao
juiz é racionalmente impossível resolver a controvérsia principal sem ver
antes solucionada a questão de direito comunitário, e para formular essa solução
lhe falta competência, há de buscá-la obrigatoriamente junto ao órgão
jurisdicional qualificado. O entendimento do Tribunal de Luxemburgo sobre
o tema tem sido o de que “el recurso prejudicial es posible desde el momento
en que una cuestión referente al derecho comunitario se plantea ante un órgano
jurisdicional nacional, y poco importa que haya surgido antes en el espíritu de
una de las partes o antes en el espíritu del juez.”[59]
Já a questão
correlata de saber se o juiz, em tal hipótese, deve ou não ouvir as partes
sobre a iniciativa dele, antes de remeter a questão ao tribunal competente, é
ponto de relevância menor e dependente, em todo caso, do que sobre o assunto
dispuser a lei local do processo.
Tal
como se passa no controle incidental de constitucionalidade, a provocação
correspondente é “de juiz a juiz”, passando a atuação das partes, no
relativo ao incidente, a uma posição absolutamente secundária. Em hipótese
alguma se há de admitir que algum dos litigantes – ou mesmo todos eles em
conjunto – possa submeter, sem intermediação do juiz nacional, a questão
prejudicial de direito comunitário à Corte supranacional. É aos “órgãos
jurisdicionais dos Estados membros”, e só a eles, que os tratados conferem
tal poder.[60]
O
mesmo princípio impõe uma outra importante constatação. Diante de postulação
da parte (ou das partes) no sentido de ser interrogado o tribunal comunitário,
aos órgãos jurisdicionais nacionais cabe sempre o poder-dever de examinar a pertinência
da questão suscitada, exercitando em relação a ela uma espécie de juízo
de admissibilidade, como se usa dizer quanto aos recursos. Trata-se de
apurar, primeiro, se realmente se cuida de uma questão de direito supranacional
e, logo a seguir, se ela é uma verdadeira prejudicial, vale dizer, se a sua
resolução é, em concreto, condicionante lógica da resposta jurisdicional a
ser dada ao petitum. Sendo negativa a
resposta a uma ou outra dessas interrogações, o juiz nacional denegará a
formação do incidente.[61]
Vista
essa realidade pelo seu avesso, resulta que nem aos litigantes nem aos governos
eventualmente interessados, nem sequer aos órgãos de direção da comunidade
de nações, permite-se bloquear o acesso do órgão jurisdicional nacional à
corte supranacional para os fins de que se trata. A decisão pertence com
exclusividade ao juiz da causa (nacional) e nenhum mecanismo jurídico pode
impedir o seguimento do reenvio. O que a tal propósito deve ser lembrado é que
dita decisão (interlocutória, ou decisão stricto
sensu nos critérios do direito brasileiro) pode ser recorrível segundo o
sistema processual interno, e não é impensável que ao recurso acaso interponível
se confira efeito suspensivo. Nesse caso, teoricamente, o encaminhamento da
questão pelo juiz nacional ao comunitário só se deveria fazer após o
julgamento desse recurso, mas na prática não se pode olvidar a eventualidade
de o juiz nacional ignorar ou desconsiderar o efeito suspensivo. Essa é uma
ocorrência que, obviamente, pode causar dificuldades e incertezas no âmbito da
jurisdição comunitária. Com o senso prático e o escrupuloso respeito à
esfera de atribuições das jurisdições nacionais que sempre pautaram suas
soluções, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias considera que, uma
vez recebida a solicitação do juízo local, ela tramitará regularmente
enquanto não lhe chegue comunicação de outra deliberação jurisdicional em
contrário, partida do próprio órgão reenviante ou de algum que em relação
a ele atue como juízo ad quem na
ordem recursal interna.[62]
Assim evita imiscuir-se em questões processuais de âmbito nacional, resolve
inclusive os casos de extinção do processo principal acaso ocorridos segundo o
direito interno e, de outra banda, impede que qualquer outro ente, estranho à
organização judiciária nacional interessada, obstrua o andamento do exame
prejudicial.
Não
é necessário enfatizar a importância da formulação das “perguntas” que
o juiz nacional dirige ao comunitário. Elas têm de ser claras e completas,
possibilitando ao órgão competente para a resposta uma correta e abrangente
visão do problema colocado. É de todo conveniente, mesmo que o direito
processual interno nada disponha a respeito, que o juiz interrogante consulte
amplamente as partes sobre esse tema e a elas proporcione oportunidade de
cooperar na elaboração das perguntas a serem submetidas ao tribunal comunitário.
Não há de perder de vista, contudo, que a decisão é sempre sua: as partes
propõem, o juiz dispõe, como em qualquer outro caso. O simples encaminhamento,
sem discussão ou exame crítico, das questões propostas por uma das partes, ou
mais de uma, implica imperdoável abdicação dos poderes, que sempre são também
deveres, por parte do magistrado. Juntamente com as perguntas, que constituem o
objeto por excelência da apreciação a ser feita pela corte destinatária, é
conveniente que se encaminhe circunstanciado relato dos dados da causa e das peças
pertinentes, para bom esclarecimento do juízo prejudicial.
Seja
no sistema europeu, seja no andino, não há regras expressas sobre o momento
adequado à suscitação do incidente. Ressalvadas disposições processuais de
direito local (que, entretanto, não podem ser restritivas a ponto de prejudicar
a operacionalidade do sistema), o juiz nacional tem ampla liberdade para
processar e encaminhar o incidente a qualquer altura do processo e em qualquer
instância.
14.
Aspectos
procedimentais.
O encaminhamento do expediente se faz de juízo a juízo, sem qualquer espécie
de intermediação. Prescreve o direito comunitário europeu que “a decisão
do órgão jurisdicional nacional que suspende o procedimento passando-o ao
Tribunal será notificada a este de ofício pelo referido órgão jurisdicional
nacional”.[63]
De igual modo se afirma, quanto ao Pacto Andino, que
“el mecanismo prejudicial opera de juez a juez, o sea que el correspondiente
oficio, resolución o memorándum contentivo de la solicitud debe ser enviado
directamente al Tribunal comunitario, así como este envía directamente sus
autos o sentencias al juez nacional. No debe recurrirse
en estes casos a las vías administrativa o diplomática, ni conviene
utilizar formas que no vienen al caso como la valija diplomática o las llamadas
comisiones rogatorias, que bien podrían dilatar innecessariamente el trámite.”[64] Agudamente assinala Pescatore que
o emprego de tais vias “implica no sólo el riesgo de retrasos y de olvidos;
implica también, para el poder político, la tentación de interceptar las
preguntas que le molesten.”[65]
A
fase comunitária é apenas um incidente do processo principal, não um novo
processo autônomo. É importante não se perder de vista essa realidade, até
para que ao espírito dos operadores esteja sempre presente uma consideração
fundamental: o juiz do processo, ao qual cabe a responsabilidade de dirimir o
litígio, é o nacional, para a formação de cujo raciocínio lógico o órgão
jurisdicional comunitário apenas fornecerá uma das premissas. A partilha de
atribuições, no emprego de um instrumento de cooperação interjurisdicional
como esse, deve manter-se clara e rigorosamente respeitada, inclusive no que diz
com o já mencionado juízo de pertinência ou de admissibilidade, que se situa por inteiro na competência do juiz nacional. Dentro desse espírito, o Tribunal de Luxemburgo
repele com veemência toda veleidade de veto a qualquer das questões
encaminhadas.[66]
O
procedimento adotado na Corte européia é notavelmente complexo, com uma longa
fase inicial escrita. Embora não caiba uma instrução
no mais preciso sentido do termo, eis que de fatos não se cuida em tal
sede, uma complicada preparação do julgamento tem lugar: abre-se oportunidade
– após a tradução do expediente a todos os idiomas oficiais da Comunidade
– a manifestações de todos os governos dos Estados membros, à Comissão e,
eventualmente, ao Conselho e ao Parlamento. Segue-se uma audiência preliminar,
na qual se resolvem questões de competência (do plenário da Corte ou de algum
de seus órgãos fracionários)[67]
e examina-se a eventual necessidade de buscar informações suplementares. Só
depois de colhidas estas, se for caso, convoca-se a audiência final, em que
podem ainda manifestar-se todas as entidades habilitadas a intervir na fase
escrita. Uma particularidade relevante é que, ao contrário dos demais
procedimentos ante a Corte, neste do recurso prejudicial admite-se que os
litigantes do processo original se representem por advogados não matriculados
em algum dos Colégios da Comunidade, pois a representação é regida,
excepcionalmente, pela legislação do país de origem do recurso.[68]
Isso permite sempre que atuem os mesmos advogados do processo de origem e até
as partes pessoalmente, se o admite a lei local para a espécie.
A
todas essas numerosas e complexas formalidades soma-se a necessidade de
traduzirem-se os atos a todas as línguas oficiais, assim como a vista obrigatória
a um advogado-geral (figura similar à
do nosso Ministério Público na função de custos
legis). Conquanto proporcione, sem dúvida, um amplíssimo e completo
esclarecimento da controvérsia, é bem de ver que um tal procedimento
necessariamente consome muito tempo (aproximadamente um ano, segundo Pescatore)[69],
cabendo lembrar que esse lapso se deve acrescer à duração total do processo
de origem, cuja suspensão, no interregno, é obrigatória. Sabido que o
problema da demora dos processos judiciais em geral é uma preocupação quase
obsessiva dos juristas e operadores do direito em nossos dias, parece inquestionável
a necessidade de abreviar esse trâmite.
O
procedimento seguido pelo Tribunal de Quito, se crítica merecer, é por
incorrer no exagero oposto, o da extrema singeleza e celeridade – censura, aliás,
que lhe faz um de seus mais insignes integrantes e mais autorizados analistas.[70]
Com efeito, o Estatuto do Tribunal dedica apenas quatro artigos (61 e seguintes)
ao tema, um deles para definir os requisitos – todos intuitivos – que deve
conter a solicitação do juízo a quo
e outro para fixar o prazo de trinta dias para a emissão da sentença, ao passo
que os demais nada aduzem de relevante. O que realmente chama a atenção é
aquele prazo brevíssimo, que por si seria já impeditivo, inclusive, de
qualquer tentativa de construção pretoriana de um procedimento mais elaborado
e mais apto a proporcionar ao tribunal melhor aprofundamento das questões sob
exame. No sistema andino, nenhuma providência ou dilação se interpõe entre a
suscitação do incidente e a sua resolução pelo tribunal ad
quem. A regulação do mecanismo judicial do Pacto de Cartagena valorizou
como interesse absolutamente prevalente aquele da celeridade, segundo parece
igualmente indicar a regra sobre suspensão do processo principal, limitada à
hipótese de suscitação obrigatória do incidente—diversamente do disposto
para o Tribunal de Luxemburgo, onde a suspensão é automática e obrigatória
em todos os casos.[71]
Em
qualquer dos sistemas, a manifestação jurisdicional sobre a questão
prejudicial de direito comunitário é denominada sentença.
Esse é o termo usado pelos tratados e geralmente empregada também pela
doutrina especializada. Talvez seja
conveniente alertar o leitor brasileiro para um dado: a palavra não pode ser
tomada aí nem no sentido que lhe dá o Código de Processo Civil (ato judicial
de conteúdo decisório que põe termo ao procedimento de primeiro grau, com ou
sem julgamento do mérito) nem no outro difundido entre nós pela doutrina
dominante (julgamento do meritum causae).
Trata-se mais exatamente de uma decisão em sentido estrito, proferida em sede
incidental, sem a força de extinguir o processo e sem o efeito de atribuir ou
negar ao autor o bem da vida por ele pretendido. A bem de obviar equívocos,
tratá-la-emos doravante de sentença
incidente ou sentença prejudicial.
15.
A sentença incidente.
As decisões dos tribunais comunitários—seja a Corte Andina, seja aquela das
Comunidades Européias—são tomadas “em conselho”, vale dizer, em reunião
fechada da qual só participam os juízes, ao modo da Conference
da Suprema Corte norte-americana. Na de Luxemburgo, a primeira reunião
ocorre logo após a discussão oral pública da causa em audiência, mas tem caráter
preliminar e nada ainda se decide nessa oportunidade: o relator apresentará
posteriormente uma proposta de decisão que será discutida e conduzirá ao
resultado final. A discussão travada entre os juízes e o conjunto todo das
deliberações permanecem rigorosamente secretos, como determina o art. 32 do
Estatuto da Corte. Há grande empenho na busca de consenso, embora este,
obviamente, nem sempre possa ser alcançado.[72]Ainda assim, todos os
arestos—e portanto as sentenças prejudiciais entre eles—são publicados
como se unânimes fossem, quaisquer que tenham sido as dissensões ocorridas. Não
se divulgam nem mesmo se mencionam votos vencidos. Essa é, sem dúvida, uma sábia
política, considerando tratar-se de tribunais compostos por juízes de diversas
nacionalidades, que entretanto deve atuar acima e independentemente delas
todas—sem por isso estarem de todo a salvo de eventuais pressões e censuras
dos respectivos governos ou de outras entidades nacionais.[73]
Basicamente,
a sentença prejudicial obedece à estrutura formal dos atos decisórios de sua
espécie, sem apresentar particularidades notáveis do ponto-de-vista formal,
salvo a já apontada. Há uma exposição inicial sobre os fatos relevantes da
causa e as posições sustentadas pelos interessados, a modo de relatório;
segue-se a discussão dos argumentos postos em que se expressa a fundamentação
do julgado e chega-se à parte conclusiva, encerrando as respostas da corte às
perguntas formuladas pelo juiz nacional. Um ponto apenas deve ser assinalado, e
prende-se à própria natureza e finalidade do incidente solucionado: o conteúdo
conclusivo, correspondente ao decisum
das sentenças em geral, não passará de pura e simples declaração da quaestio
iuris agitada, pois não está a cargo do órgão jurisdicional comunitário,
mas do nacional, a aplicação do direito (tal qual tenha sido declarado por
aquele) aos fatos da causa.
Não
é incomum que as questões formuladas se apresentem complexas, múltiplas e
eventualmente obscuras ou mal-formuladas, assim como ocasionalmente podem
envolver interpretação ou juízo de validade sobre questões só pertinentes
ao direito nacional: o juiz suscitante nem sempre tem o cuidado de censurar
impropriedades e por vezes transmite simplesmente ao tribunal comunitário as
perguntas que lhe dirigira a parte. Como as cortes supranacionais timbram em
preservar a exclusividade da competência do juiz nacional para a avaliação da
pertinência (juízo de admissibilidade), com raras exceções que a seu tempo
serão vistas, têm de resolver os problemas, por vezes delicados, que tais
situações podem envolver. Nessa emergência, o Tribunal de Luxemburgo tem
procurado adotar “una actitud amigable y constructiva”,[74]esforçando-se
por ordenar as questões, reelaborá-las de modo mais claro, agrupá-las por
afinidade e fornecer ao juiz nacional os elementos de que ele realmente
necessita para o julgamento a seu cargo: uma definição precisa e clara do
teor, sentido e validade das normas de direito comunitário a serem aplicadas.
Ainda assim, por muito cooperativa e tolerante que seja a postura da corte
supranacional, pode tornar-se imperioso reformular as questões propostas para
enquadrá-las corretamente na previsão do art. 177 do Tratado CEE, ou para que
a resposta a ser fornecida tenha real utilidade para o juiz interrogante sem, de
outra banda, invadir-lhe a competência própria e exclusiva. Prevalece em todos
os casos a preocupação em evitar respostas tão genéricas e abstratas que não
transcendam ao mero interesse acadêmico, mas, de outra banda,
que não incorram no erro oposto de solucionar desde logo a lide em si
mesma.. Limitado por essas duas barreiras, o juiz supranacional nem sempre pode
impedir-se de alterar a própria substância da questão proposta.[75]O
que não lhe é dado é ultrapassar os limites de sua competência, de sorte que
as questões, por exemplo, pertinentes só ao direito nacional terão de restar
sem resposta. O máximo que em tal emergência pode fazer o tribunal comunitário
é registrar as razões da impossibilidade de responder.
Admite-se,
e tem ocorrido na prática, que o juiz nacional, ainda insatisfeito com as soluções
oferecidas, ou encontrando dificuldades no seu correto entendimento, volte a
questionar o tribunal supranacional mediante novo reenvio.[76]
Ocasionalmente, a insistência pode ensejar formulação mais clara das
perguntas e definição mais precisa de seu objeto—embora à custa, é óbvio,
de um retardamento ainda maior do desate final da controvérsia.
Tão
logo lavrada a sentença incidente, seu conteúdo é transmitido diretamente ao
juízo a quo, sem prejuízo da
notificação direta aos litigantes. Posteriormente, ela será divulgada pela
publicação oficial da comunidade. Na prática européia, a Corte de Luxemburgo
costuma solicitar ao juiz nacional que lhe comunique oportunamente o resultado
final do litígio, o modo de aplicação do direito supranacional efetuada e as
eventuais dificuldades ou percalços acaso ocorridos para o cumprimento da decisão
prejudicial. As comunicações assim recebidas dos órgãos judiciários
nacionais são objeto de cuidadosa análise técnica pelos serviços de
secretaria da Corte de Justiça das CEE, que fazem distribuir a todos os juízes
uma nota informativa sobre cada
caso.[77]Isso
permite um contínuo trabalho de avaliação crítica do próprio trabalho da
Corte e do grau de integração com o das jurisdições nacionais.
16.
Eficácia da sentença: vinculação do juiz suscitante.
Embora se possam encontrar na doutrina vozes atribuindo força de res
iudicata à sentença da qual estamos tratando,[78]não
parece que se possa falar aí de coisa julgada material. Posto que não há nem
pode haver, em sede de reenvio prejudicial, aplicação
de direito a fato, mas sim e somente interpretação de regra
jurídica ou apreciação de sua validade em abstrato, resulta afastada a
formação de verdadeira coisa julgada, geralmente qualificada como material. O
que se tem de evitar é a confusão entre efeito vinculativo para o juiz
suscitante e caso julgado: quando muito, cabe falar-se de “coisa
interpretada”.[79]
O
que existe em realidade é vinculação do juiz suscitante aos termos da
resposta obtida, isto é, à chose interprétée
de que fala o jurista francês. Esse é o primeiro, específico e indiscutível
efeito da sentença prejudicial, constituindo, aliás, a própria razão de ser
do instituto ora sob estudo. Trata-se, é claro, de um ato jurisdicional e não
de mero parecer ou recomendação. Não é ainda a decisão final da causa, mas
faz parte dela mercê da técnica, já analisada, do julgamento fracionado ou per
saltum. Se é verdadeira a lição conhecida de Recasén
Siches, segundo a qual a função jurisdicional implica sempre a criação,
pelo juiz, de uma norma individual para o caso, substitutiva da norma legal genérica,
única “perfeita” porque só ela é verdadeiramente aplicável[80]—a
partilha da competência funcional entre o juiz nacional e o comunitário
atribui a este a tarefa de criação da regra individual e concreta, cuja aplicação
há de ser feita por aquele. O juiz nacional que recusasse submissão ao aresto
comunitário, a mais de usurpar competência alheia, colocaria o Estado cujo
governo integra em situação de descumprimento de regra de direito
supranacional, sujeitando-o, ao menos teoricamente, a todas as conseqüências
jurídicas daí defluentes, inclusive a responsabilização civil e a ação
específica de incumprimento.[81]
Impende
assinalar, entretanto, que as situações concretas, em sua infindável
variedade, podem dar lugar a uma interpenetração mais íntima e menos
simplista das duas competências ou, se preferirmos, dos dois momentos lógicos,
o da interpretação e o da aplicação. Assim é que, se a qualificação jurídica
de determinados fatos deve ser feita segundo o direito comunitário, nem por
isso se exclui que o tribunal supranacional remeta ao juiz local essa qualificação
em concreto, limitando-se a instruções genéricas sobre o modo de fazê-la,
porque ele, mais do que outrem, está informado dos fatos.[82]
Outro dado a ponderar é que, em situações nada raras, a interpretação do
direito comunitário é provocada com o objetivo de aquilatar da validade, em
face dele, de um ato normativo de direito interno. Em tal hipótese, à corte
supranacional nada mais incumbe do que a estrita interpretação da regra
comunitária em tese; a dedução das conseqüências e repercussões no plano
do direito nacional permanece a cargo do juiz local. Tais observações e
temperamentos quanto à vinculação do juiz nacional mostram a sua necessária
relatividade, indispensável à observância do “espírito de cooperação que
constitui a alma do recurso prejudicial”.[83]
Questão
igualmente relevante diz com a vinculação de outros juízes pertencentes à
mesma ordem jurídica interna mas de instância superior àquela do suscitante.
Suponha-se que o juiz nacional de primeiro grau haja buscado e obtido a
manifestação prejudicial, mas algum recurso tenha elevado o conhecimento da
causa a um órgão jurisdicional superior. Parece fora de dúvida que este
adotará também obrigatoriamente, como ponto já pacificado e indiscutível, a
decisão prejudicial. Cumpre apenas observar que a intercorrente evolução do
procedimento em diferentes instâncias pode haver alterado a configuração das
questões antes levantadas ou mesmo dado ensejo ao surgimento de outras—razão
bastante para admitir-se venha o órgão
superior a novamente suscitar o incidente de prejudicialidade comunitária, em
atenção à nova realidade. Essa faculdade de voltar-se a acionar o reenvio
obviamente não pode ser negada ao órgão detentor da competência recursal até
mesmo porque, segundo já ficou explicado, o próprio juiz suscitante pode
buscar respostas complementares e melhores esclarecimentos após haver obtido a
sentença incidente: igual poder, a
fortiori, há de ser assegurado ao juiz situado acima dele na hierarquia
judiciária interna.. Não se imagine ver aí uma desvinculação do juiz do
recurso relativamente à sentença incidente, pois, nos limites em que ela seria
obrigatória para o juiz inferior, continua a ser na instância superior.[84]Idêntico
raciocínio vale para a eventualidade de haver intercorrido deslocamento
horizontal de competência interna: o juiz que recebe o processo por força de
declinação ou modificação de competência resulta tão vinculado quanto o
outro, que ordenara o reenvio.
17.
Eficácia da sentença: extensão e limitações.
Do ponto-de-vista dos litigantes, a eficácia dos julgados proferidos em sede de
recurso prejudicial atua inter partes e nos limites do litígio concretamente considerado. De
um modo geral, as lições clássicas relativas aos limites da coisa julgada
(embora não se trate tecnicamente desse instituto) são invocáveis. Na visão
subjetiva, não se pode impor a autoridade daquela decisão a terceiros, que não
participaram do contraditório judicial; objetivamente, dita autoridade não se
pode alargar para além dos lindes do litígio e da res iudicanda delimitada pelas postulações formuladas. Contudo, não
se pode subestimar a extraordinária força de precedente que as decisões
prejudiciais comunitárias tendem a assumir, já em razão de sua própria
natureza de resoluções sobre puras quaestiones
iuris, já por virtude da mecânica procedimental que, sobretudo no direito
europeu, proporciona discussão amplíssima e alto grau de informação dos juízes
comunitários sobre os temas decididos. Cuidando-se do exame de direito em tese
(embora, como sabe qualquer juiz experiente, nem sempre seja possível abstrair
por completo dos dados de fato), resulta difícil imaginar-se que a mesma questão—principalmente
se for de validade—possa voltar a ser levantada perante a mesma corte
supranacional. Por outro lado, em procedimento a que são convocados todos os
Estados membros, a Comissão, eventualmente o Conselho e o Parlamento, além das
partes no processo original, e onde os juízes dispõem da mais ampla liberdade
para a busca de informações e esclarecimentos, não é provável que algum
aspecto relevante da controvérsia reste intocado. Daí resulta que as sentenças
prejudiciais tendem a adquirir, de fato, uma excepcional estabilidade e
amplitude de alcance, embora este não deva, tecnicamente,
atuar erga omnes ou sequer ultra partes.
Essa
tendência à estabilidade, como é fácil compreender, acentua-se sobremaneira
com pertinência às prejudiciais de invalidade: há uma natural relutância em
aceitar que o ato normativo
declarado inválido possa vir a ser convalidado alhures, ou vice-versa.. A propósito,
a Corte européia tem-se forrado com extrema prudência pelo menos a um desses
desconfortáveis contratempos: em face de uma questão de validez de norma
comunitária suscitada em recurso prejudicial, evita sistematicamente
afirmar-lhe a higidez jurídica em termos peremptórios, preferindo uma fórmula
já consagrada: “o exame da questão proposta não revelou elementos que
afetem a validade do ato impugnado.”[85]Subterfúgios
semânticos à parte, mesmo que a Corte proclamasse sem tergiversar a validez da
normativa, sempre seria possível voltar a discuti-la à luz de outros
argumentos e sob fundamentação diversa—ou mesmo sem tais variações, se
aplicados com rigor os critérios tradicionais relativos aos limites do caso
julgado. Resta, em todo caso, o problema da invalidade afirmada,
que não admite fórmulas evasivas.
Bergerès, aplicando, em última análise, os critérios geralmente empregados na
delimitação do alcance da coisa julgada—embora sem admitir que desse
instituto se trate no caso—pensa haver encontrado a solução exata. Depois de
anotar a relatividade da imposição erga
omnes da decisão pela validade tão-somente em razão de sua ligação aos
motivos, deixando claro, por outro lado, que se afastada essa ressalva o julgado
se impõe a todos de forma absoluta,[86]
sustenta como imperativo lógico inelutável que a sentença prejudicial de
invalidade impõe sua eficácia universalmente a todas as jurisdições
nacionais, relativamente a todos os litígios ulteriormente ajuizados.[87]
Efetivamente, não há como negar a boa lógica em que a tese assenta: quando se
declara a nulidade do ato normativo, perde importância a indagação dos
motivos da decisão, pois se um fundamento, qualquer que seja, basta à conclusão
pela invalidade, nada importa se por algum outro motivo acaso invocável a argüição
devesse ser rejeitada. Mas a verdade é que a CJCE continua a relutar em
comprometer-se com a tese, preferindo deixar sempre aberta alguma válvula para
possível reapreciação futura—coerente, aliás, com a orientação
eminentemente pragmática que costuma impregnar sua jurisprudência. É deveras
significativo registrar, aliás, que o próprio aresto chamado por Bergerès a apoiar sua posição é extremamente cauteloso e
pleno de reservas, a ponto de não aportar força alguma à tese.[88]
Na verdade, o que ali se afirma de modo taxativo é que a preexistência
de uma decisão da Corte européia no sentido da invalidade dispensa
o juiz nacional de voltar a suscitar idêntica questão ante a mesma, mas não
lhe proíbe tal iniciativa—idéia,
aliás, corrente entre os especialistas. O que apenas significa, em termos práticos,
que a obrigatoriedade do reenvio, imposta aos tribunais cujas decisões sejam
irrecorríveis, deixa de existir na hipótese, convertendo-se em mera faculdade.[89]Parece
correto afirmar-se, outrossim, que o decidido pelo Tribunal comunitário em sede
prejudicial é, sim, vinculativo para todos os órgãos judiciários dos Estados
membros em um preciso sentido: o de que a nenhum deles é dado decidir, sequer incidenter
tantum, a mesma questão em sentido diverso, ainda que se lhe permita
renovar o questionamento à Corte comunitária.[90] Convém ter-se presente,
como parece ter a Corte, a índole dinâmica e evolutiva do direito comunitário,
voltado para as necessidades práticas da Comunidade que é principalmente econômica,
em pleno processo de construção pela jurisprudência, e por todos esses
motivos infenso a inoportunos e imobilizantes engessamentos doutrinários.
Com
respeito aos limites temporais da eficácia do provimento judicial que nos
ocupa, sua natureza intrinsecamente declaratória deveria impor desde logo e só
por si efeitos ex tunc, de sorte que
a interpretação consagrada ou a declaração de nulidade alcançariam
todas as situações jurídicas regidas pela norma em causa, inclusive as pretéritas.
A CJCE chegou a acolher explicitamente essa doutrina em alguns de seus
julgados.[91]Mas,
por outro lado, ela se tem repetidamente atribuído a faculdade de limitar no
tempo dita eficácia, mediante declaração no próprio ato decisório do
momento a partir do qual a declaração de invalidade ou a interpretação
produz os seus efeitos.[92] Para fundamentar este
entendimento, recorre a uma duvidosa analogia, invocando os arts. 174 e 176 do
Tratado CEE, que efetivamente contemplam essa faculdade de limitação temporal
de eficácia—mas não cuidam de reenvio prejudicial, e sim da ação direta de
invalidade.[93]
Na verdade, trata-se de mais uma clara manifestação da sensibilidade da Corte
às necessidades e conveniências práticas, ainda que à custa de algum sacrifício
dos postulados da doutrina tradicional. Em determinados casos, aquelas razões
contingentes se impunham de modo particularmente imperioso, dado o grande vulto
dos transtornos e prejuízos econômicos que a eficácia retroativa poderia
acarretar e a pletora gigantesca de litígios que seriam certamente suscitados,
tudo a envolver repercussões que a Corte dificilmente poderia avaliar
antecipadamente. A elaborada argumentação jurídica, construída embora com
grande proficiência, mal disfarça aquela real motivação.[94]
No Tribunal de Quito, o problema não tem sido levantado, provavelmente em razão
da concepção absolutamente restritiva quanto ao alcance do julgado
prejudicial, rigorosissimamente limitado ao âmbito do processo e do caso
concreto, o que afasta ou, quando não, minimiza aquelas temidas repercussões
extra-jurídicas.[95]
18.
Reenvio obrigatório e reenvio facultativo.
Em regra, o juiz nacional tem a faculdade, não o dever de suscitar a questão
prejudicial junto ao tribunal comunitário. Desde o momento em que se define no
processo a situação duvidosa, pode determinar o encaminhamento dela ao exame
da corte supranacional. Não foi assim nos primórdios do direito comunitário
europeu, pois o art. 41 do pioneiro Tratado CECA previa o recurso prejudicial
como obrigatório em qualquer hipótese. Posteriormente, o Tratado CEE, em seu
art. 177, traduzindo a preocupação de seus redatores em evitar uma avalancha
gigantesca de recursos dessa natureza, alterou a fórmula original, mantendo a
obrigatoriedade apenas para os órgãos jurisdicionais de última instância
segundo o direito interno. O Tratado de Cartagena seguiu a mesma diretriz (art.
24 e segs.).
Conquanto
a conveniência prática de limitar o número de reenvios seja sem dúvida
relevante, não se pode deixar de admitir, por outro lado, que a opcionalidade
abre uma brecha no sistema: como nem sempre as instâncias nacionais possíveis
são esgotadas, pode suceder que a interpretação do direito comunitário e, o
que é mais sério, o juízo sobre a validade de suas regras permaneça em mãos
dos juízes nacionais. Há quem defenda, por isso, a obrigatoriedade como regra,
no mínimo para as questões de validade.[96]
Pode
haver certa dificuldade na identificação precisa da irrecorribilidade das
decisões nacionais para os efeitos de que se cuida. É preciso definir se o
cabimento ou não de algum recurso deve ser verificado em concreto, à vista do
litígio individualmente considerado, ou se o ponto de referência deve ser a
posição hierárquica interna do órgão jurisdicional, de sorte que só esteja
obrigado ao reenvio aquele situado na cúpula do sistema judiciário nacional. A
“teoria do litígio concreto” parece responder melhor à teleologia da
norma, pois o que se objetiva é garantir a submissão da prejudicial ao
tribunal comunitário sempre que a oportunidade de fazê-lo se apresente como a
última possível—independentemente de tratar-se ou não de uma corte suprema.
Existem, é bom lembrar, situações particulares, reguladas pela ampla
variedade dos sistemas jurídico-processuais internos, em que a recorribilidade
é limitada, condicionada ou até suprimida, independentemente da posição do
órgão julgador no quadro hierárquico: juízos de pequena quantia,
procedimentos sumários ou sumaríssimos, causas submetidas a instância única,
submissão da admissibilidade de recurso ao exclusivo alvedrio do próprio órgão
sentenciante etc. Precisamente esses órgãos jurisdicionais, que não
correspondem à cúpula do sistema judiciário nacional (onde podem ter até uma
posição bem modesta) e só eventualmente detêm a palavra final, estariam,
segundo a “teoria orgânica”, habilitados a tomar em suas mãos a interpretação
do direito comunitário e o juízo de validade de suas normas, poder esse vedado
aos tribunais supremos. Essas considerações conduzem a doutrina a preferir a
“teoria do litígio concreto”.[97]Tem-se entendido ser também
essa a posição da CJCE, embora o acórdão usualmente invocado em abono da
tese tenha tratado mais detida e especificamente do problema do procedimento das
medidas provisórias e preparatórias.[98]
A questão, porém, não é pacífica: um dos mais influentes e acatados
especialistas defende a teoria orgânica, com argumento principalmente nas
ingentes dificuldades e nas infindáveis discussões que a identificação da
irrecorribilidade, caso a caso e na variedade imensa das legislações
nacionais, inevitavelmente ensejaria.[99]
A
“obrigatoriedade” da suscitação não significa que o órgão jurisdicional
nacional, de cuja esperada decisão não caiba recurso, esteja dispensado, menos
ainda proibido, de avaliar a pertinência da questão posta à sua consideração
(retro, no 13). A
admissibilidade do incidente (que em última análise se confunde com sua
necessidade e utilidade) tem de ser sempre examinada pelo órgão jurisdicional
nacional. Expressa tal idéia, com exemplar exatidão, o art. 29, último parágrafo,
do Acordo de Cartagena,[100]que
sem razão foi censurado por ilustre comentador do texto sob alegação de que a
cláusula final “se a considera procedente”, sem equivalente no texto
europeu, estaria afastando a obrigatoriedade do reenvio.[101]O
que aí se assegura é precisamente a faculdade do tribunal local de rejeitar a
solicitação impertinente. Na verdade, o texto andino é, no particular,
superior ao seu homólogo europeu, que não explicita esse poder conferido ao
juiz e por isso precisou ser interpretado no sentido de que o contém implícito.
Aliás, Pescatore, confrontando as
alíneas 2 e 3 do art. 177 do Tratado CEE, constata que naquela (pertinente ao
reenvio facultativo) aparece a expressão “se (o juiz) considera necessária
uma decisão a respeito para emitir seu julgado”, ausente da alínea 3, mas
adverte que se trata (aí sim!) de um defeito de redação, ensinando: “El
juiz supremo goza del mismo poder de apreciación que cualquier otro juez en lo
que se refiere a la pertinencia de una cuestión. No basta, pués, que una
cuestión sea suscitada por las partes; es necesario, además, que el juez, y
por supuesto también el juez supremo, estime que dicha cuestión es pertinente
para la solución del litigio.” A imperfeição não está, pois, no texto andino, mas no europeu.[102]
Ainda
sobre a obrigatoriedade do reenvio, impõe-se lembrar o que ficou registrado
sobre o efeito de precedente que dispensa (sem proibir) o órgão judiciário
nacional de voltar a interrogar o tribunal comunitário quanto à mesma questão
prejudicial já submetida e resolvida quando ela reaparecer em outro processo da
mesma ou de outra jurisdição nacional (retro,
no 17 e notas 83 a 87). Diante do precedente, o juiz nacional (ainda
que supremo) tanto pode dispensar a consulta e orientar-se pela decisão
supranacional anterior, se considera a questão suficiente e convenientemente
elucidada, quanto voltar a encaminhá-la, se lhe parecem ainda cabíveis
esclarecimentos ou complementações úteis à elaboração de sua própria
sentença. O caráter facultativo que então assume a suscitação do incidente
cria também para o órgão judiciário nacional -
ça va sans dire - a oportunidade de discutir o precedente, se com seus termos não
concorda, mas não é demasia recordar ainda uma vez que não lhe é lícito
desconsiderar simplesmente o precedente e resolver a mesma questão em sentido
diverso, ainda que incidenter tantum (retro,
no 17).
19.
Reenvio obrigatório e a “teoria do ato claro”. Um outro e mais grave problema diz respeito
ao próprio conceito de questão, no
qual se contém a idéia de controvérsia ou pelo menos de dúvida. Pode parecer
ao juiz nacional (daqueles sujeitos à “obrigatoriedade” do reenvio) que
nenhuma questão se apresenta, porque se lhe afigura perfeitamente claro o
sentido do dispositivo a ser aplicado, donde a completa desnecessidade de chamar
o juiz comunitário a esclarecê-lo. Segundo a chamada “teoria do ato
claro”, o juiz estaria dispensado, na hipótese, de buscar a manifestação do
órgão jurisdicional comunitário, ainda que instado por algum interessado a
provocá-la. Essa doutrina tem boa base lógica, pois nas circunstâncias falece
ao reenvio qualquer utilidade prática; de outra banda, se ao juiz nacional,
mesmo o supremo, faculta-se rejeitar a questão por impertinente, com maior razão
se lhe tem de permitir proclamar a inexistência de uma questão enquanto tal.
Mas
a moeda tem sua outra face. Deixando-se ao juiz nacional a inteira liberdade de
avaliar a “clareza” do ato normativo, estar-se-á conferindo a ele, com
exclusividade, a valoração jurídica da norma de direito comunitário, em
aberto contraste com o espírito e a razão de ser do recurso prejudicial. O
muito de subjetivo que essa avaliação pode ter; as particulares dificuldades
de interpretação de um sistema normativo que se expressa em diversos idiomas e
utiliza conceitos e princípios talvez desconhecidos do direito interno e do próprio
direito internacional; o peso inevitável dos interesses nacionais sobre a
consciência e o inconsciente do juiz --
tudo aponta para os graves perigos de insubmissão ao ordenamento jurídico
supranacional que a adoção irrestrita da “teoria do ato claro” haveria de
acarretar. Esses riscos não são apenas teóricos ou meramente potenciais. Eles
se revelaram muito claramente a partir do acatamento daquela doutrina pelo Conseil
d’Etat francês em uma série de decisões amplamente conhecidas (casos Shell-Berre,
19 de junho de 1964; Synacomex, 10 de
julho de 1970 e o mais conhecido Cohn-Bendit,
22 de dezembro de 1978), que alguns setores da doutrina consideraram capazes
de justificar uma ação comunitária de incumprimento contra o Estado francês.[103]A
questão foi objeto de intensa discussão, mas só em 1982 veio a ser
especificamente examinada e decidida pela CJCE, a instância da Corte de Cassação
da Itália, originando a célebre sentença Cilfit, cuja importância maior está em que, pela primeira vez, a
Corte européia foi chamada a interpretar o próprio art. 177 do Tratado. Ela
começa por reafirmar que também os tribunais aptos à prolação de sentenças
irrecorríveis detêm a prerrogativa de avaliar a pertinência das questões
prejudiciais suscitadas e passa a admitir que “a correta aplicação do
direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não deixa lugar a
nenhuma dúvida razoável sobre a maneira de resolver a questão proposta”,
acolhendo o princípio in claris non fit
interpretatio. Mas adita que, para chegar a tal conclusão, “o órgão
jurisdicional nacional deve estar convencido de que a mesma evidência se
imporia aos órgãos jurisdicionais dos outros Estados membros e ao Tribunal de
Justiça”. Aduziu ainda uma longa série de considerações sobre a
especificidade do direito comunitário, seu complexo regime lingüístico, as
diferenças entre as noções e princípios que o norteiam em comparação aos
aplicáveis a cada um dos sistemas jurídicos nacionais, as particularidades de
sua terminologia e, sobretudo, a grande e decorrente multiplicidade de
perspectivas que os juízes de diferentes países podem adotar na sua interpretação.
Arrematou observando que “cada disposição de direito comunitário deve ser
situada em seu contexto e interpretada à luz do conjunto de normas desse
direito, de suas finalidades e dos estado de sua evolução ao tempo em que há
de ser aplicada,” para finalmente responder à Cassação italiana que ela só
estaria dispensada da obrigação de reenvio se “a aplicação correta do
direito comunitário se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida
razoável; a ocorrência de tal eventualidade deve-se valorar em função das
características próprias do direito comunitário e das dificuldades
particulares que apresenta sua interpretação
e do risco de divergências de jurisprudência dentro da Comunidade.”[104]
Embora
se haja escrito a propósito desse julgado, não sem alguma ironia, que “à la
théorie de l’acte clair a été substituée la théorie de l’acte évident”,[105]
não há negar que a sentença Cilfit
definiu com a precisão possível as condições e requisitos para a configuração
de uma certeza objetiva, como única apta a dispensar a consulta. Sem dúvida, o
que nela se contém como referencial mais importante é a necessidade de ter o
juiz nacional bem presente não apenas o seu convencimento pessoal,
mas aquele que, nas circunstâncias, se possa imaginar seja também o de
qualquer outro juiz nacional de qualquer Estado membro e do próprio tribunal
comunitário. “No puede
considerar a priori que lo que le
parece claro según sus propias coordenadas lo sea también según las de otros
Estados miembros y las de la Comunidad.”[106]
Assim, o órgão
julgador só se dispensará da consulta se considerar que qualquer outro no âmbito
da comunidade agiria de igual forma. Na prática, a recomendação do julgado é
a de que, presente a mais tênue dúvida, ainda que apenas suposta no espírito
de outro e hipotético juiz, deve-se dar curso ao incidente.
Com
ou sem invocação da “teoria do ato claro”, algumas vezes os tribunais
nacionais têm-se abstido do reenvio a que estariam obrigados, dando lugar à
formação de jurisprudência que envolve aplicação do direito comunitário
sem a indispensável colaboração do Tribunal comunitário. Em um ou outro
desses casos, sobreveio a suscitação do incidente de prejudicialidade donde
resultou manifestação da CJCE contrária à jurisprudência estabelecida.[107]Mas
a doutrina dos especialistas e a jurisprudência da Corte de Luxemburgo condenam
semelhante orientação, na verdade incompatível com a idéia de supremacia do
direito comunitário e, portanto, da correspondente jurisdição. Mesmo nos
casos em que o juízo nacional esteja vinculado pelo direito local a precedentes
ou ao dever de consulta a um tribunal superior da mesma ordem judiciária, não
lhe pode ser suprimida a faculdade de suscitar a questão prejudicial ante a
corte supranacional, se a questão envolvida é de direito comunitário.[108]
20.
Emprego abusivo.
Se é certo que o mecanismo jurídico do reenvio prejudicial deve ser
zelosamente preservado de todas as tentativas de contorná-lo, evitando-se que
algum artifício transfira para os juízes nacionais a competência exclusiva
atribuída ao tribunal comunitário, também é verdade, por outro lado, que ele
não se deve prestar a objetivos que não lhe são próprios, sobretudo o de
pura e simples procrastinação do curso dos processos.[109]
A
prática dos tribunais comunitários, particularmente o mais antigo e
experimentado deles, tem revelado alguns eventuais abusos no emprego do remédio,
assim como alguns casos limítrofes que merecem análise. Seja por má compreensão
do espírito e dos objetivos do instituto, ou por insuficiente informação a
seu respeito, ou ainda por simples malícia, tem-se algumas vezes intentado
utilizá-lo na perseguição de finalidades diversas daquelas para as quais foi
concebido. Abstraídos os casos de simples tentativa de protelação da marcha
processual, -- que os juízes nacionais têm o poder e o dever de coibir através
do efetivo exercício do controle de admissibilidade—por vezes simulam-se litígios
inexistentes para montar um processo simulado e a partir dele obter um
pronunciamento do tribunal comunitário; em alguma outra ocasião o litígio
existe, mas foi deliberadamente programado para, a partir de uma divergência de
mínima importância a adrede criada, conhecer-se a posição do corte
supranacional a respeito de certa quaestio
iuris, a fim de orientar condutas futuras. Na primeira hipótese, tem-se
processo fictício; na última, o chamado “caso-teste”.
Como
ocorre na jurisdição ordinária, nem sempre se pode facilmente detectar a
simulação no processo. Talvez por isso, a Corte Européia eventualmente tem
sido acusada de prestar-se ao jogo, que nem sempre é visível claramente,
quando na verdade o que ela faz, salvo em casos extremos, é manter fidelidade a
sua diretriz de nunca interferir no juízo de pertinência, reservado com
exclusividade ao juiz nacional. Aliás, para evitar a um só tempo a invasão de
competência alheia e a utilização abusiva de um remédio processual nobre, o
desejável é uma atitude vigilante e ativa do juiz nacional sobre a
admissibilidade do incidente, inclusive com vistas à identificação dos casos
de processo simulado—que, mais do
que não se prestarem ao emprego do recurso prejudicial, não se podem eles
mesmos admitir à tramitação. Um
exemplo freqüentemente citado é o de uma cooperativa rural francesa que
demandou na França sua filial inglesa, pretendendo subtrair-se à incidência
da regulamentação vigente no Reino Unido sobre comércio de leite. Sem embargo
da evidência de inexistir aí litígio real entre as supostas partes, a Corte
comunitária não se negou a responder, ainda que o tenha feito evasivamente e
evitado, como é óbvio, manifestar-se sobre a validade da legislação britânica.
Já em outra oportunidade, diante da evidência gritante da artificialidade da
lide (um fabricante italiano de vinho e seu comprador simularam litígio entre
ambos para, diante de um juiz italiano, verem declarada indevida a cobrança de
um imposto francês, por incompatibilidade do regime tributário aplicado com as
normas comunitárias), a Corte recusou resposta por considerar tal procedimento
contrário ao sistema comunitário e envolver matéria estranha à sua função.[110]
Já
o “caso-teste” envolve uma lide real, se considerada em seu aspecto formal,
conquanto resulte de uma montagem deliberada. Por exemplo, um importador alemão
compra a irrisória quantidade de duas caixas de batatas de procedência
chilena, apenas para pôr à prova, ante a Corte comunitária, a regulamentação
supranacional restritiva de tais importações, com vistas à definição de uma
estratégia de negócios para o futuro.[111]
Existe aí uma hipótese de aplicação de direito a fato, e lugar para
interpretação prejudicial do direito comunitário. Ainda assim, é manifesto o
abuso da jurisdição, que na verdade está sendo usada como órgão de
consulta; o controle da admissibilidade da ação, entretanto, teria sua sede
adequada no juízo do processo principal, vale dizer, o nacional. Admitida a
demanda e a seguir a consulta à corte comunitária, resulta difícil para esta
a negativa de resposta.
Utilização
abusiva do recurso prejudicial que não se pode admitir é aquela que nega o próprio
pressuposto fundamental do instituto, a saber, a natureza supranacional da norma
cuja interpretação ou validez é questionada. Quando reenviada matéria dessa
ordem, respeitante exclusivamente ao direito interno, a Corte se vê impedida de
apreciá-la, antes de tudo, por estranha à sua competência e, ademais, por
ausente questão de direito comunitário a ser decidida.[112]
Também
têm sido levadas à Corte de Luxemburgo questões estritamente políticas, sem
envolver matéria jurídica, hipótese em que, a toda evidência, nada há que
decidir no âmbito jurisdicional. Exemplo: quando ainda se negociava a adesão
de Portugal e Espanha às Comunidades, dois comerciantes celebraram contrato em
que se contemplava como motivo de rescisão a hipótese de se vir a constatar a
impossibilidade daquela adesão; posta a demanda de rescisão ante um tribunal
alemão, este interrogou à CJCE, mediante recurso prejudicial, se as condições
para o ingresso daqueles Estados achavam-se ou não satisfeitas. A Corte deu a
única resposta possível: não havia questão jurídica a solucionar, mas uma
questão política ainda em aberto, pendente de solução a ser dada por órgãos
institucionais políticos e não pelo jurisdicional.[113]
Esses
exemplos mostram que o Tribunal Europeu mantém constantemente uma atitude
cooperativa e amigável em relação aos juízes nacionais, evitando quanto possível
desestimular o emprego correto do recurso. Mas nem sempre pode furtar-se à
eventualidade de rejeição das questões propostas, com ou sem explicações
quanto aos motivos, seja para evitar invasão de competência alheia, seja para
não desvirtuar o espírito desse remédio processual.
21.
A importância do instituto. Os juristas que se têm dedicado ao estudo do recurso prejudicial são
unânimes em admitir que o direito comunitário, seja como sistema normativo
positivo, seja como disciplina jurídica em termos de ciência, não seria o que
é hoje sem a contribuição desse instituto.
Embora
não seja essa referência quantitativa, por si mesma, a mais importante, não
é desprezível o fato de que os reenvios chegaram a representar metade dos
processos todos submetidos a cada ano à Corte de Luxemburgo.[114]
Esse peso estatístico impressionante não se deve apenas
ao emprego previsível do remédio como instrumento uniformizador por
excelência, mas também a uma imprevista expansão e alargamento de seu
uso para cobrir campos e objetivos que se imaginavam reservados a outros
modos de exercício da jurisdição comunitária. Sobre haver-se revelado o mais
útil do ponto-de-vista prático e o mais apto a concorrer, na esfera
jurisdicional, para a construção de um sistema normativo tão novo e ainda tão
eivado de lacunas, o recurso prejudicial ocupou em grande parte o espaço que se
imaginava reservado a outros instrumentos de acesso à jurisdição
supranacional.
Assim
é, por exemplo, que ele se revelou superior às ações diretas de invalidade e
de incumprimento, instrumentos muito travados na prática por contingências políticas
e suscetibilidades diplomáticas. Posta à mão dos juízes e ao alcance dos
litigantes particulares, independentemente da iniciativa de órgãos
governamentais ou de instituições comunitárias nem sempre dispostas ao
enfrentamento das contendas judiciais, apresentou resultados muito mais efetivos
na função de instrumento de controle das infrações aos tratados do que as ações
diretas.[115]
Posto em marcha pelo interesse subjetivo reflexo dos particulares, alcança,
entretanto, resultados que transcendem a esses interesses.
Como
já se registrou, foi no exercício dessa sua competência que a Corte de Justiça
das Comunidades Européias trouxe à luz, inclusive, os princípios basilares em
que hoje assenta o próprio conceito de direito comunitário, a saber, as noções
fundamentais de aplicação direta da norma comunitária e de sua primazia sobre
o direito interno de cada um dos Estados membros. Ao contrário do que viria a
acontecer com o Acordo de Cartagena, que, beneficiado pela experiência européia,
explicitamente consagrou esses princípios (arts. 3 e 5), eles não aparecem nos
textos instituidores das comunidades da Europa. Foi a jurisprudência originada
pelo exame dos recursos prejudiciais que os revelou e desenvolveu. E, por imposição
natural dessa construção jurisprudencial, tais postulados básicos são hoje
universalmente reconhecidos pela doutrina especializada e, o que é mais, por
manifestações oficiais da Comissão das Comunidades, como a contida no Ditame
de 31 de maio de 1985, onde, de resto, também se afirma como princípio de
igual altitude o da “existência de procedimentos que permitam assegurar a
uniformidade da interpretação e, por essa via, a eficácia do direito comunitário.”
O
que melhor explica a força extraordinária e a expansão imprevista desse
instituto é provavelmente o fato de sua absoluta afinação com o espírito do
direito comunitário e adequação perfeita à própria idéia básica de
integração. Nada pode ser mais “integrativo”—no sentido de favorecedor
da interpenetração de diferentes culturas, tradições, costumes e atividades
econômicas, com aplainamento das correspondentes diferenças sem jamais perdê-las
de vista—do que um instrumento cuja caraterística básica é a cooperação
entre um ente comunitário e instituições governamentais dos diferentes países
membros. Não se trata apenas de assegurar a aplicação uniforme do direito
comum, nem só de revelar-lhe o conteúdo normativo nem sempre explícito e
claro—trata-se, sobretudo, de realizar essa tarefa mediante a constante,
interativa e amigável troca de contribuições entre a jurisdição
comunitária e cada uma das jurisdições nacionais, por meio do jogo de
perguntas e respostas.
No
exercício de algumas de suas outras competências, um tribunal supranacional
pode aparecer como um ente superior a ditar regras, impor condutas e censurar
faltas, despertando suscetibilidades e levantando resistências. No manejo do
reenvio prejudicial, ao contrário, ele atua sempre em regime de estreita
colaboração com as jurisdições nacionais, exclusivamente
mediante provocação delas. Talvez se explique por aí, mais do que de
outro modo, o êxito universalmente reconhecido e proclamado desse engenhoso e
profícuo instrumento de integração entre nações e de afirmação do direito
comunitário.
(Dezembro
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proferida em Montevidéu, 1o de novembro de 1991 (texto consultado em
original).
[1]
Agudamente observou-o Werter R. Faria,
na conferência intitulada A
necessidade de um Tribunal de Justiça do Mercosul (texto inédito,
consultado em original por cortesia do autor). No mesmo sentido, Sergio
Abreu Bonilla, Mercosur e
integración, p. 47. Igualmente, Jorge
Pérez Otermin, El Mercado Común
del Sur, desde Asunción a Ouro Preto, p. 13 e segs., enfatizando que o
Pacto de Assunção foi apenas um “Tratado marco”. Eduardo
Grebler, no artigo “O Mercosul institucional e a solução de
controvérsias”, in Boletim de
Integração Latino-americana, nº 12, p. 45, destaca que o Tratado de
Assunção não é “do” Mercado Comum do Sul, mas “para” a sua
constituição.
[2]
Grebler, ib.
[3]
Também sobre isso discorre com notável precisão Werter
Faria, no trabalho anteriormente citado.
[4]
Pérez Otermin, obra cit., p.
31 e segs.
[5]
É o que sugere Adolfo Gelsi Bidart, “Tribunal de Justicia para el Mercosur”,
in Revista de la Facultad de Derecho, n.
1, Montevideo, Julio-Deciembre de 1991, p. 61 (artigo iniciado à p. 57).
[6]
Sirva lembrar que o próprio Tribunal de Justiça das Comunidades
Européias pode atuar em qualidade de juízo arbitral, à base de uma cláusula
compromissória contida em contrato público ou privado (Tratado CEE, art.
181; Tratado Euratom, art. 153 e Tratado CECA, art.. 42), embora seja de
rara ocorrência essa hipótese, como informa Maurice-Christian
Bergerès, Contentieux
communautaire, p. 44.
[7]
Bergerès, Contentieux communautaire, p. 15 (nº 4). Com especialíssima pertinência aos métodos de interpretação,
aqui particularmente importantes, cf. Fernando Uribe Restrepo, La
interpretación prejudicial en el derecho andino, p. 95 e segs., e César
Moyano Bonilla, La interpretación
de los tratados internacionales, passim, especialmente p. 129.
[8]
Assim mesmo, no plural, porque elas são três: Comunidade Européia do Carvão
e do Aço (CECA), Comunidade
Econômica Européia (CEE) e Euratom (CEEA). Mesmo tendo em comum os mesmos
parceiros, grande parte dos órgãos diretivos (inclusive o mencionado
Tribunal de Luxemburgo) e uma visível tendência à unificação,
continuaram a ser instituições distintas. Só a partir do Tratado de
Maastrich começou-se a falar de uma “União Européia” como entidade
unificada, embora já se aceitasse antes, na prática, a referência simples
à “Comunidade Européia” (cf. Pierre
Pescatore, Introducción
de Derecho Comunitario, conferência proferida em Montevideo, 30 de
outubro de 1991 -- com texto quase idêntico ao publicado na Revue suisse de droit international et de droit européen, nº 1, p.
25-58, Zurich, 1991).
[9]
Cappelletti, “Justicia
constitucional supranacional”, in Revista de la Facultad de Derecho de México, tomo XXVIII,
mayo-agosto 1978, no
110, p. 341 (iniciado à p. 337).
[10]
Um organismo internacional atua entre governos;
o supranacional acima deles,
mediante sujeição dos Estados membros a um poder que lhes é superior (Fausto
Quadros, Direito das comunidades européias, p. 341 e s., Lisboa, 1991). Como
anota Pierre Pescatore, a
aplicação direta e preferencial do direito comunitário explica também
que nos Tratados das Comunidades Européias não se hajam os Estados membros
-- ao contrário do que ocorre no Direito Internacional -- reservado o poder
de interpretar esses mesmos instrumentos,
poder que só têm as instituições comunitárias (“Introducción
de derecho comunitario”, conferência proferida em Montevideo, outubro de
1991, texto consultado em original).
[11] Perez
Otermín, ob. cit., p. 23-24. O
ilustre publicista resumiu aí os critérios que mais desenvolvidamente
fixara no artigo “Principios esenciales de un ordenamiento jurídico
comunitario”, in Revista Diplomática
do Instituto Artigas del Servicio Exterior, nº 11, Montevidéu, 1993.
[12]
“Exigências fundamentais de igualdade e de certeza jurídica
postulam que as normas comunitárias -- não qualificáveis como fonte de Direito Internacional,
nem de direito estrangeiro, nem de direito interno dos Estados particulares
-- devem ter plena eficácia obrigatória e direta aplicação em todos os
Estados membros (...) assim como entrar em vigor em toda parte ao mesmo
tempo e conseguir aplicação igual e uniforme em face de todos os destinatários.”
(Corte Constitucional da Itália, decisão de 27 de novembro de 1973 --
“caso Frontini” -- citada por Mauro
Cappelletti, “Justicia constitucional supranacional”, in
Revista de la Facultad de Derecho de México, tomo XXVIII, nº 110, p.
344, iniciado à p. 337).
[13]
Em alguns textos de doutrina chega-se a uma quase sinonímia entre os
dois termos: cf. José de Moura Rocha,
“Comunidade Européia, Mercosul, jurisdição”, no volume Estudos
de direito processual em memória de Luiz Machado Guimarães, p. 219 e
s., defendendo a necessidade de uma profunda revisão de conceitos e superação
de preconceitos.
[14]
“Il y a là une différence considerable par rapport au droit
international classique (qui connaît au demeurant, un déclin
des sources conventionelles) dont les modes de règlement des différends
sont politisés jusque dans leur expression ultime.” (Bergerès, ob.
cit., p. 15).
[15] Cf. Bergerès, ob.
cit., p. 41-43, concluindo que, “en réalité, les analyses comparatives
sous-estiment une réalité essentielle: la spécificité de l’ordre
juridique communautaire.” Análise
e conclusão semelhantes podem ser encontradas em Renaud
Dehousse, La Cour de Justice
des Communautés Européenes, p. 19.
[16]
Já foi sugerido, aliás, que a própria estrutura atual da
Comunidade Européia pode representar uma transição ou estágio intermediário
entre um organismo intergovernamental (de direito internacional clássico) e
um ente federal: Manuel Diez de
Velasco Vallejo, ”El Tribunal de Justicia de las Comunidades
Europeas”, conferência proferida em Montevideo, 1o de novembro
de 1991, p. 39 (texto consultado em original).
[17]
Falando do inevitável modelo europeu, Olavo
Luis Batista assinala a importância singular da Corte de Luxemburgo
nesse processo de “erosão” das soberanias: A
solução de divergências no Mercosul, seus efeitos jurídicos, econômicos
e políticos nos Estados membros, p. 91 e s. (Porto Alegre, 1995).
[18]
Cf. Pierre
Pescatore, “Introducción de derecho comunitario” cit.
[19]
Chiovenda, Instituições
de direito processual civil, v. 2, p. 10. Ainda que se possam opor objeções
a essa clássica lição, ela parece pôr em destaque a nota mais característica
e própria da jurisdição.
[20]
V. g., sentenças de
30.06.66, processo n. 61/65, Vaassen-Göbbels, Recueil 1966/380;
de 27.11.73, proc. 36/73, Nederlandse
Spoorwegen I, Rec.
1973/1299; de 23.03.82, proc. 53/81,
Levin, Rec. 1981/1035, apud Bergerès,
obra cit., p. 234, n. 220.
[21]
V.. por todos, o clássico Francesco
Menestrina, La pregiudiciale
nel processo civile, e Barbosa
Moreira, Questões prejudiciais e coisa julgada, passim. Também tratamos do
tema em nosso estudo A ação declaratória
incidental.
[22]
Para uma esclarecedora lição e vasta informação bibliográfica,
consulta-se com proveito José Alfredo
de Oliveira Baracho, Processo
constitucional, p. 191 e s.
[23]
Cf., por todos, Pontes de Miranda, Embargos,
prejulgado e revista, p. 163 e s. e Sidney Sanches, Uniformização
de jurisprudência, passim.
[24]
Sobre esse conceito, continua insuperada a lição de Piero Calamandrei, La
sentenza soggetivamente complessa, in Opere Giuridiche, v. I, p. 106 e
segs. Entre nós, vale consultar Frederico
Marques, Instituições de Direito Processual Civil, v. III, p. 408-9 (4ª
ed., 1972).
[25]
Cf. Fernando Uribe-Restrepo, “El
tribunal andino de justicia: una experiencia aleccionadora”, conferência
proferida no Instituto Artigas del Servicio Exterior, Ministério de Relações
Exteriores do Uruguai, 31 de
outubro de 1991 (texto consultado no original).
[26]
Sobre o episódio, há detalhada informação de Pérez
Otermin às ps. 65 e 66 da obra antes citada. Uma análise crítica
da posição brasileira pode ser vista em Deisy
de Freitas Ventura, A ordem jurídica
do Mercosul, p. 15.
[27]
No âmbito das Comunidades Européias, os numerosos litígios dessa classe
passaram à competência do Tribunal de Primeiro Grau desde sua criação
(cf. Alessandro Migliazza, “Il
Tribunale di primo grado delle Communità Europeee”, in
Rivista di Diritto Processuale, ano XLVII (1992), nº 1, p. 1 e s.
[28]
Cf. Bergerès, obra cit., p.
171; Pescatore, conferência
cit., item II.3.
[29]
Para uma análise mais aprofundada e completa das várias “ações”
proponíveis, v. Bergerès, ob.
cit., p. 171-283.
[30] Nesse sentido, Pierre
Pescatore, El recurso prejudicial del art. 177 del Tratado CEE y la cooperación
del Tribunal con los órganos jurisdiccionales nacionales, p. 8.
Uribe Restrepo, de sua parte, observa que “los jueces nacionales
(...) son los verdaderos jueces de la integración” (La
interpretación prejudicial... cit., p. 10).
[31]
Independentemente da posição que se adote relativamente ao dito interesse
público na uniformidade de aplicação do direito interno, tão
enfaticamente valorizado pelo vigente ordenamento processual brasileiro, ela
é absolutamente fundamental para a própria sobrevivência de um sistema de
direito comunitário. Onde o peso dos interesses nacionais pudesse influir
sobre a interpretação, os próprios objetivos da integração estariam
irremediavelmente comprometidos.
[32] Vale conferir as
vigorosas ponderações de Pérez
Otermin, El Mercado Común del
Sur... cit., p. 111-2.
[33]
Importa lembrar que o termo “recurso”, em outros idiomas e em outros
sistemas jurídicos, tem significado radicalmente diverso do que lhe atribuímos.
[34]
Sobre o conceito de incidente, consulta-se
com proveito a monografia Incidente
processual, de Antônio
Scarance Fernandes.
[35]
Pescatore observou
essa semelhança entre o reenvio prejudicial e os mecanismos de controle de
constitucionalidade (concentrados, mas por via incidental) adotados pela
Alemanha, Itália e, mais recentemente, Espanha: El
recurso prejudicial... cit., p. 7.
[36]
Os tratados de Roma (Comunidades Européias) e o de Cartagena (Pacto Andino)
tratam diversamente a matéria: lá, o “recurso prejudicial” abrange
também as questões de validade; aqui, só as de interpretação. O texto
europeu é o seguinte:
“O Tribunal de Justiça será
competente para pronunciar-se, com caráter prejudicial:
a)
sobre a interpretação do presente
Tratado;
b)
sobre a validade e interpretação dos
atos adotados pelas instituições da Comunidade;
c)
sobre a interpretação dos estatutos
dos organismos criados por um ato do Conselho, quando ditos estatutos assim
o prevejam.
Quando se colocar uma questão desta
natureza ante um órgão jurisdicional de um dos Estados membros, dito órgão
poderá pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a mesma, se
considera necessária uma decisão a respeito para emitir seu julgamento.
Quando se colocar uma questão desse
tipo em um processo pendente ante um órgão jurisdicional nacional, cujas
decisões não sejam suscetíveis de ulterior recurso judicial segundo o
direito interno, dito órgão estará obrigado a submeter a questão ao
Tribunal de Justiça.” (Tratado CEE,
art. 177).
[37]
Ao modo do que se passa, no direito processual comum, com a resolução de
alguma questão prejudicial a cujo respeito não tenha qualquer das partes
postulado declaração com força de
res iudicata: cf. nosso A ação
declaratória incidental, p. 67-8. No caso da prejudicialidade de
direito comunitário, essa possibilidade (de apreciação incidenter
pelo juiz nacional) preocupa sobremodo considerável parcela da doutrina,
que vê aí uma quebra de garantia da pureza e uniformidade de aplicação
do direito supranacional (cf. Bergerès,
obra cit., p. 234). Com mais vagar voltaremos ao tema (infra, no
texto, no 18).
[38]Cf.
Barbosa Moreira, Questões
prejudiciais... cit.,
p. 56, notas 5 e 6.
[39]
Anota-o Uribe Restrepo, La
interpretación prejudicial... cit., p. 18.
[40]
Destacou a semelhança Pescatore, El recurso prejudicial...
cit., p. 7.
[41]
Sobre isso, vale conferir o importante estudo de Mauro Cappelletti “Justicia constitucional supranacional”,
in Revista de la Facultad de Derecho
de México, tomo XXVIII. nº 110, p. 347 e s. (iniciado à p. 337).
[42]
Referimo-nos à brilhante análise, transcendente em muito ao plano
estritamente técnico-jurídico, de Adolphe
Touffait, “Réflexions d’un magistrat français sur son expérience
de juge à la Cour de Justice des Communautés Européenes”, in
Revue Internationale de Droit Comparé, ano 35, nº 2, abril-junho 1983,
p. 283 e s. Enquanto ao pensamento jurídico francês tradicional, ancorado
às idéias de Rousseau e Carré de Malberg, repugna a possibilidade de questionamento
jurisdicional da lei soberana e intocável, ou do ato administrativo (até
sob cominação criminal, art. 127 do Code
Pénal), o jurista alemão, por exemplo, encontra em seu próprio texto
constitucional, e já no seu capítulo inicial, a garantia expressa de que
os direitos fundamentais aí elencados vinculam indiferentemente os três
poderes do Estado. Touffait
lembra, inclusive, a dolorosa e inolvidável lição histórica do
nazi-fascismo, que ensinou aos constituintes alemão e italiano a
necessidade de proteger o cidadão inclusive
contra a lei. Sobre as mesmas questões, com enfoque diverso,
consulta-se também com proveito Cappelletti,
“El ‘formidable problema’ del control judicial y la contribución del
análisis comparado” , in Revista de
Estudios Políticos (nueva época), nº 13, Enero-febrero 1980, Madrid,
1980.
[43]
A viticultora Liesselotte Hauer insurgiu-se contra um regulamento comunitário
que proibira, por razões de superprodução, o plantio de videiras viníferas
por certo tempo, alegando que a vedação afrontava seu direito fundamental
de propriedade e o de livremente exercer sua profissão. Submetida a norma
questionada ao controle de legalidade comunitária, pela via do reenvio
prejudicial, o Tribunal de Luxemburgo respondeu que não ocorria tal
afronta, porque a interessada continuava livre para dar a suas terras
qualquer outra utilização. O juiz alemão, a seguir, suscitou a questão
da constitucionalidade da mesma norma ante a Corte Constitucional, levando
alguns juristas a perguntar se não estaria havendo insubordinação ao
veredito da Corte supranacional, ou se não ocorreria bis
in idem (cf. Touffait, art.
cit., p. 291).
[44] Sobre os tratados das
comunidades européias, Pescatore afirma:
“Aunque inicialmente fueran celebrados conforme al Derecho Internacional,
desde su entrada en vigor se han considerado como la
Constitución de la Comunidad tanto en una visión de conjunto como en
el método de su interpretación.” (“Introducción...” cit., p.
4, com grifo nosso).
[45]
Nessa perspectiva, a validade está em posição de prioridade lógica em
face da interpretação, já que não faz sentido interpretar-se aquilo que
de antemão se sabe não ser válido. Pode ser, então, que o Tribunal
Andino se veja obrigado a analisar questão de validade em sede prejudicial,
mesmo sem uma formal atribuição da correspondente competência (v. a
especulação de Uribe Restrepo, La interpretación
prejudicial... cit., p. 49 e s.)
[46] Pescatore,
El recurso
prejudicial... “ cit., p. 10: “En efecto,
es posible que al interpretarse de una determinada manera un texto
comunitario puedan evitarse los vicios que le serían inherentes con otra
interpretación.”
[47]
Pescatore, El recurso prejudicial... cit.., p. 8-9, menciona à nota 5 um caso
ilustrativo: um industrial italiano que adequara a embalagem de seu produto
a uma diretiva comunitária sofreu persecução penal em razão disso,
porque a legislação local, inclusive armada de censura criminal, ditava
especificações diferentes e não se havia ajustado à aludida diretiva
depois de decorrido o prazo correspondente; a Corte impôs a observância da
diretiva, com a conseqüência, no plano interno, da extinção da ação
punitiva (sentença de 5 de
abril de 1979, Tullio Ratti, 148/78,
Repert. p. 1629).
[48]
V. Michael Schweitzer e Waldemar
Hummer, Derecho europeo, p.
140, acrescentando logo adiante que a revelação do exato sentido de um
texto “es un fenômeno dialético, en que las formas de interpretación
han de asociarse” (p. 142-3).
[49]
Cf. Uribe Restrepo, La
interpretación prejudicial... cit., p. 103.
[50]
Sentença de 3 de dezembro de 1987 (a primeira decisão prejudicial
do Tribunal de Quito), proc. 1-IP-87, Gaceta
Oficial del Acuerdo, ano V, no
28, apud Uribe Restrepo, ob.
ult. cit., p. 104.
[51]
A jurisprudência da Corte Européia é firme e reiterada quanto ao
ponto, v. g., sentenças International
Fruit Cy, 12 de dezembro de 1972, proc. 21-24/72,
Repert. 1972/1.219; SIOT, 16
de março de 1983, proc. 266/81, Repert.
1981/731; SPI e Michelin, proc. 267 e 269/81,
Repert. 1981/801. Este último
caso teve especial repercussão por referir-se aos importantes acordos GATT.
[52]
“... todo esfuerzo de interpretación consiste no sólo en poner en
evidencia la significación de los términos escritos de la ley; un sistema
jurídico es un conjunto vivo en el que se encuentran, en estrecha interación,
la letra de los textos y determinadas concepciones jurídicas tan arraigadas
que no han encontrado expresión en el texto legal. El Tribunal há aceptado
siempre cuestiones judiciales que tienden a sacar a la luz ciertos
principios generales inherentes al orden jurídico comunitário o a llenar
las lagunas del sistema.” (Pescatore,
El recurso prejudicial... cit., p. 9-10).
[53]
Sobre este último e importantíssimo aspecto, já tivemos ocasião
de pôr em destaque a primorosa lição de Touffait
em suas Réflexions d’un
magistrat français... (retro, nota
42).
[54]
Sentença Buitoni, de 20 de
fevereiro de 1979, proc. 122/78, Repert.
1978/677.
[55]
Sentença Internationale
Handelsgesellschaft, de 17 de dezembro de 1970, proc. 11/70, Repert. 1970/1.125.
Em sentido negativo, mas com temática semelhante, também a já citada sentença Hauer
(retro, nota 43).
[56]
V. g., na já lembrada
sentença International Fruit Cy. (retro,
nota 51).
[57]
Embora os julgados dos tribunais supranacionais, nessa como em outras
questões teóricas, venham evitando o aprofundamento das discussões
doutrinárias, preferindo os enfoques rigorosamente pragmáticos, não é
demasia anotar, para o caso, que certamente não se configura litispendência:
as pessoas envolvidas em um e outro processo são por hipótese diversas e,
portanto, não se realiza a tríplice
identidade. Diversa há de ser, de resto, a causa petendi, por força da distinta natureza dos interesses em litígio.
[58]
A posição da Corte sobre a matéria começou a desenhar-se na
sentença de 15 de outubro de 1979, Roquette, proc. 145/79, Repert.
1979/2.917. Muito mais claramente, o Tribunal veio a definir a doutrina
exposta no texto na sentença de 27 de fevereiro de 1985, Soc. de Produtos de Milho, proc. 112/83, destacando que essa limitação
temporal da eficácia faz parte das prerrogativas outorgadas à Corte no
interesse da uniformidade de aplicação do direito comunitário.
[59]
Pescatore, El recurso prejudicial... cit., p. 13, lembrando a famosa sentença Cilfit.
[60]
Tratado CEE, art. 177; Pacto Andino, art. 29.
[61]
Sobre o assunto e com invariável uniformidade, tem-se manifestado a
Corte de Luxemburgo, v. g.: em 16 de janeiro de 1974, Rheinmülen, 166/73, Repert.
1973/33; 29 de novembro de 1978, Pigs
Marketing Board, 83/78, Repert. 1978/2347;
16 de dezembro de 1981, Foglia c.
Novello II, 244/80, Repert. 1980/3045.
Para o direito andino, Uribe Restrepo,
La interpretación
prejudicial... cit., p.137 e s.
[62]
Cf. Pescatore , El
recurso prejudicial... cit., p. 19, com ilustração jurisprudencial
(nota 29).
[63]
Estatuto do Tribunal das Comunidades Européias, art. 20.
[64] Uribe
Restrepo, La
interpretación prejudicial... cit., p.
138-9.
[65]
El recurso prejudicial... cit., p.
15.
[66]
V. g., no já citado caso Pigs
Marketing Board (retro, nota 59), em que o governo britânico, atacando
asperamente o questionário encaminhado pelo juízo a
quo, pretendeu sem êxito que a Corte de Luxemburgo o expurgasse das
perguntas que tinha por impertinentes.
[67]
Mesmo após a criação do chamado “Tribunal de primeiro grau”, a matéria
permanece na exclusiva competência da Corte (cf.
Migliazza, art. cit. à nota 27), mas não necessariamente na do seu
plenário.
[68]
É a regra do art. 104, alínea 2, do Regulamento do Tribunal.
[69]
El recurso prejudicial... cit., p.
21. Confirma-o Uribe Restrepo, La
interpretación prejudicial... cit., p. 140.
[70]
Uribe, obra e loc. ult. cit.
[71]O
mesmo autor insurge-se contra a exigüidade do prazo e a falta de
oportunidade para ouvir interessados e melhor esclarecer os dados da questão,
propondo reforma tendente a adotar algumas das diretrizes procedimentais
seguidas pela corte européia, além de ampliar o objeto possível do
reenvio para abranger o controle de legalidade (ob. cit., p. 146-7).
[72]Cf. Bergerès, ob. cit., p. 131 e s.
[73]Observa Uribe Restrepo: “En efecto, los jueces comunitarios
dificilmente podrían mantener una absoluta independencia y escapar a
indebidas presiones, incluso subconscientes, de parte de los
correspondientes paises y
gobiernos que pueden sentirse favorecidos o perjudicados con los fallos, si
la posición de cada uno llega a ser publicamente conocida”. (La
interpretación prejudicial... cit., p. 142).
De
sua vez, Bergerès tem por
essencial ao caráter supranacional da jurisdição em causa a reserva da
posição individual de cada julgador, embora admitindo a existência de críticas
veementes ao sistema (Contentieux
communautaire cit., p. 132).
[74]Pescatore, El
recurso prejudicial... cit., p. 22.
[75]Bergerès, ob. cit., p.
245, alude a essa faculdade da Corte européia e cita vários julgados em
que ela vem reafirmada.
[76]A
faculdade assim conferida ao juiz nacional baseia-se em que à orientação
dele destina-se o instituto, de sorte que, sem embargo de sua inescapável
vinculação ao julgado prejudicial -- et
pour cause -- não lhe pode ser subtraído o poder de avaliar se a
resposta obtida é clara e suficiente ou
necessita de complementação (CJCE, sentença de 24 de junho de 1969, Milch, Fett und Eierkontor, 29/68, Repert. p. 165).
[77]Cf..
Pescatore, El recurso prejudicial... cit., p. 23.
[78]V. g., Pescatore,
id., ib., citando à nota 32 sentença da CJCE de
3 de fevereiro de 1977, Benedetti,
52/76, Repert. p. 163; esse
julgado, porém, trata mais exatamente de outro problema, a saber, o da
vinculação do juiz nacional.
[79]Nesse
sentido, Bergerès, ob. cit.,
p. 248 e s., com a seguinte passagem à p. 249: “Il est dès lors
fallacieux de poser les problèmes en termes d’autorité absolue ou d’autorité
relative de la chose jugée, alors que précisément il n’y a pas eu de
chose jugée. Compte tenue de ces éléments, seules les notions de d’autorité
de chose interprétée ou de précédent permettent de rendre compte
de la spécificité du système.”
[80]Luis Recaséns Siches, “Interpretación
del Derecho”, verbete na Enciclopedia
Jurídica Omeba, tomo VI (Buenos Aires, 1967).
[81]Cf..
Uribe Restrepo, La
interpretación prejudicial... cit.,
p. 129, invocando ensinamento de García
de Enterría.
[82]Assim,
a CJCE atribuiu ao juiz nacional a tarefa de determinar se os controles de
divisas aplicados por um Estado membro respeitam ou não os limites fixados
pela norma comunitária (ponto 36 da sentença de 31 de janeiro de 1984, Luisi
e Carbone, 282/82 e 26/83, Repert..
p. 377); remeteu também ao juiz local verificar se determinadas normas
nacionais sobre qualidade e comercialização eram compatíveis com a
organização comunitária do mercado de carnes de aves (sentença de 28 de
março de 1984, Pluimveeslachterij,
47-48/83, Repert.. p. 1721) e
igualmente cometeu ao juiz nacional a apuração da natureza, fiscal ou não,
de uma certa exação sobre atividade agrícola (sentença de 9 de julho de
1985, Bozzetti, 179/84, in Pescatore, ob. ult.
cit., nota 33).
[83]Pescatore, ob. ult. cit.,
p. 23.
[84]Id., ib.
[85]Pescatore, El recurso prejudicial... cit., p. 10.
[86]”Si
la Cour ne constate pas l’invalidité de la norme à propos de laquelle
elle a été interrogée, cette réponse se impose à toutes les
juridictions qui auraient à statuer dans un autre litige où la validité
du même acte communautaire serait contestée pour les mêmes motifs. Mais
l’arrêt en appréciation de validité ne lie les autres juridictions
nationales que par rapport aux
seuls moyens d’illégalité examinés au cours de la procédure préjudicielle”.
(Bergerès,
Contentieux communautaire, p. 249).
[87] Id.,
ib.
[88] “Un arrêt de la Cour constatant, en vertu de l’article
177 du traité, l’invalidité d’un acte d’une institution, en
particulier du Conseil ou de la Commission, bien qu’il ne soit adressé
directement qu’au juge qui a saisi la Cour, constitue une raison
suffisante pour toute autre juge de considérer cet acte comme non valide
pour les bésoins d’une décision qu’il doit rendre. Cette constatation
n’ayant cependant pas pour effet d’enlever aux juridictions nationales
la competence que leur reconnaît l’article 177 du traité, il appartient
a ces juridictions d’apprécier l’éxistence d’un intérêt à
soulever à nouveau une question déja tranchée par la Cour dans le cas où
celle-ci a constaté précedémment l’invalidité d’un acte d’une
institution de la Communauté. Un tel intérêt pourrai notamment éxister
s’il subsistait des questions relatives aux motifs, à l’étendue, et
eventuellement aux conséquences de l’invalidité précédemment établie.”
(Julgado de
13 de maio de 1981, International
Chemical Co., 66/80, Rec. 1981/1191, apud Bergerès, ob.
cit., p. 249-50).
[89]É,
por exemplo, o que se pode ler em Pescatore,
ob. cit., p. 17 e p. 24 -- invocando, aliás, nesta última passagem, o
mesmo aresto citado por Bergerès e
parcialmente transcrito à nota anterior.
[90]Nesse
sentido, com a habitual exatidão e clareza,
Cappelletti, Justicia
constitucional supranacional cit., p. 349
[91]V. g., sentença
de 27 de março de 1980, Amministrazione
delle Finanze dello Stato c. Denkavit Italiana, 61/79, Rec. 1980/1205, apud Bergerès,
ob. cit., p. 250.
[92]A
sentença aparentemente pioneira nesse rumo é a de 8 de abril de 1976, Defrenne
II, 43/75, Repert. p. 455.
[93]A
fundamentação acha-se particularmente desenvolvida em três julgados da
mesma data, 15 de outubro de 1980: 4/79, Soc.
Coopérative Providence Agricole de la Champagne; 109/79, SARL
Maïseries de Beauce e 145/79, Roquette
-- Repert. p. 2823, 2883 e 2917, respectivamente. O tema foi retomado no
aresto de 27 de fevereiro de 1985, Soc.
de Produtos de Milho, 112/83, Repert.
p. 719.
[94]Anota-o
Bergerès, ob. cit., p. 250-1.
[95]A
explicação é de Uribe Restrepo,
La interpretación prejudicial... cit.,
p. 145.
[96]
“Cette solution serait la seule à assurer la primauté du droit
communautaire et son application uniforme sur l’ensemble du térritoire
des Etats membres.” (Bergerès,
ob. cit., p. 235). O mesmo inconveniente se
apresenta sempre que se entrega à parte a discrição de movimentar ou não
um instrumento processual voltado para a proteção da própria ordem jurídica,
como nos recursos extraordinários.
[97]Sobre
a preferência da doutrina informa Uribe,
La interpretación prejudicial... cit., p. 125.
[98]Trata-se
da decisão de 24 de maio de 1977, Hofmann-La
Roche, 107/76, Repert. p. 957,
onde Bergerès identificou opção
pela “teoria do litígio concreto” (ob. cit., p. 235-6).
[99]Pescatore,
El recurso prejudicial... cit., p. 16.
[100]”Si la sentencia no
fuere susceptible de recurso en derecho interno, el juez suspenderá el
procedimiento y solicitará la interpretación del Tribunal de oficio, en
todo caso, o a petición de parte, si
la considera procedente” (sem
grifo no original).
[101]A crítica é de Hugo
Poppe E., “El Tribunal de Justicia del Acuerdo de Cartagena y sus
competencias”, in Derecho de la integración econômica regional, lecturas
seleccionadas, tomo II, p. 255 e s.
[102]Pescatore, ob. ult. cit.,
p. 16-7, lembrando, à nota 24, que assim decidiu o Tribunal de Luxemburgo
na tantas vezes citada sentença Cilfit
(de 6 de outubro de 1982, 283/81, Repert.
p. 3415).
[103]Cf.
Bergerès, Contentieux communautaire, p. 238, assinalando especialmente a clara
contradição entre o julgado Cohn-Bendit
e o decidido pela Corte de Luxemburgo em 4 de dezembro de 1974, Van
Duyn, 41/74, Rec. p. 1337 -- contradição suficiente para evidenciar a nenhuma
“clareza” do texto aplicado. A Comissão da Comunidade, mais afeita às
soluções políticas e à contemporização, absteve-se de qualquer providência
mais enérgica do que a comunicação de sua “profunda preocupação” ao
governo francês sobre o caso Cohn-Bendit,
procedimento idêntico ao adotado em face do governo alemão em
caso semelhante de usurpação de competência da Corte supranacional (cf. Pescatore,
ob. ult. cit., nota 43)
[104]O
teor dos tópicos principais da sentença Cilfit
integra, como anexo III, o trabalho de Pescatore
El recurso prejudicial... tantas
vezes citado ao longo deste estudo.
[105]Bergerès, ob. cit., p. 239.
[106]Pescatore, ob. ult.
cit., p. 18.
[107]Id.,
ib., nota
44.
[108]
Cf. Antonio R. Briguglio, “L’interpretazione
pregiudiziale della convenzione di Bruxelles tra Corte di Giustizia e
Cassazione”, in Rivista di Diritto
Processuale, ano XLVIII (1993), nº 4, p. 1063 e s.
[109]A
preocupação obsessiva com a celeridade processual, diuturnamente
manifestada pelos juristas e
operadores do processo, nem sempre leva na devida conta esta realidade
simples: em regra, pelo menos um dos litigantes, e por extensão seu
procurador, está interessado na demora e trabalha em favor dela. É mais do
que tempo de o advogado assumir, com o legislador e o juiz, sua parcela de
culpa na tão malfalada morosidade da Justiça.
[110]Ambos
os casos são referidos por Pescatore:
sentença de 12 de julho de 1979, União
Leiteira Normanda, 244/78, Repert.
p. 2663, e de 11 de março de 1980,
Foglia c. Novello I, 104/79,
Repert. p. 745. Este último caso ensejou uma segunda consulta e, na
medida em que renovou a primeira, uma nova rejeição (sentença de 16
de dezembro de 1981, Foglia c.
Novello II, 244/80, Repert. p.
3045.
[111]Caso
Dürbeck, 112/80, que deu lugar à
sentença de 5 de maio de 1981, Repert.
p. 1095.
[112]CJCE,
sentenças Adlerblum, de 17 de
dezembro de 1975, 93/75, Repert. p.
2147; Saunders, de 28
de março de 1979, 175/78, Repert.
p. 1129; Morsons e Jhanjan, de 27 de outubro de 1982, 35-36/82,
Repert. p. 3723; ordenanças
de inadmissão por incompetência manifesta de 27 de junho de 1979,
105/79, Repert. p. 2257 e de 12 de
março de 1980, 68/80, Repert. p.
771.
[113]Sentença
de 22 de novembro de 1978, Mattheus c.
Doego, 93/78, Repert. 2203.
[114]Pescatore, El
recurso prejudicial.... , p. 3.
[115]Uribe Restrepo, La interpretación prejudicial... cit.,
p. 22.
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