A COISA JULGADA NAS AÇÕES
DE ALIMENTOS
S
U M Á R I O
1. Considerações iniciais.
2. Coisa julgada formal e coisa julgada material.
3. A coisa julgada como instituto de Direito Material (concepção
substancialista). 4. Insuficiência do conceito de coisa julgada como
"qualidade" da sentença. 5.
Variabilidade da obrigação alimentar e coisa julgada.
6. Objeções ao art. 15 da Lei de Alimentos.
7. Discrição judicial e coisa julgada: as sentenças
"determinativas". 8.
Teoria da pretensão superveniente do réu.
9. Doutrina da "exceção eqüidosa" à imutabilidade.
10. Tentativa de assemelhação da ação revisional aos remédios rescisórios.
11. Proposta de limitação da coisa julgada a seu aspecto formal.
12. Busca de distinção entre o elemento "determinativo" e os
demais elementos da sentença. 13.
Caracteristicas da relação alimentária: dinamismo e continuidade.
14. Imutabilidade rebus sic stantibus como regra e não como exceção.
15. Impropriedade da voz "ação de modificação".
16. Considerações finais e conclusivas.
1. Tem circulado qual moeda
corrente na doutrina, até mesmo na de boa qualidade, a idéia de que as sentenças
sobre alimentos não fazem coisa julgada ou, quando muito, só formalmente
transitam em julgado ‑ o que vem a ser o mesmo, já que só é verdadeira
e propriamente dita res iudicata a material.[1] Tal é a força desse
pensamento que alcançou entre nós consagração legislativa em mais de uma
oportunidade. É o que se vê de modo direto e claro no art. 15 da vigente Lei
de Alimentos (n° 5.478, de 25 de julho de 1968), verbis:
Art. 15. A decisão judicial
sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista,
em face da modificação da situação financeira dos interessados.
De resto, a costumeira inclusão
dessas sentenças na discutível categoria das "determinativas" ou
"dispositivas" dá argumento para sua inserção na previsão do art.
471, I, do vigente Código de Processo Civil, como na do art. 289, II, do
revogado Estatuto Processual de 1939.
Assenta essa doutrina em que a
modificabilidade a todo tempo da sentença de alimentos, segundo as variações
de fortuna dos interessados e as decorrentes mutações do binômio
necessidade‑possibilidade -
referencial igualmente colocado na categoria de ius positum (Código Civil, art. 401) - não se poderia compatibilizar
com a idéia de imutabilidade ínsita no conceito de res iudicata. E, a partir de tal constatação, esforçadamente se
aplicam alguns juristas a demonstrar a exatidão do princípio hoje expresso no
aludido art. 15 e a encontrar embasamento para ele na dogmática jurídica.
Propomo‑nos demonstrar que,
muito ao contrário, trata‑se de um equívoco ao qual se chega a partir
de uma perspectiva errônea: pensamos que, realmente, a sentença de alimentos
(que os concede, denega, modifica ou extingue) faz, sim, coisa julgada, e não
somente no impróprio sentido de trânsito formal em julgado, mas também no de
verdadeiro caso julgado, em sentido material. Aliás, se de alguma restrição
ou peculiaridade se houvesse de cogitar seria quanto à coisa julgada imprópria,
formal, nunca à material, como adiante pretendemos explicar em minúcia.
2. Ainda que se incluam entre os
temas mais freqüente e profundamente analisados pelos juristas, nem por isso
se pode dizer que se haja alcançado um grau pelo menos razoável de consenso,
seja quanto ao conceito de coisa julgada, seja a respeito do duplo enfoque ao
qual pode ser ele submetido, daí resultando as concepções de coisa julgada
formal e coisa julgada material -
e ainda, o que não e o mesmo e certamente envolve dificuldade maior, a pertinência
mesma do instituto à esfera do Direito Material ou do Processual. Bem por isso,
não é demais que nos detenhamos previamente em fixar com a possível clareza
cada uma dessas realidades e posições, segundo a representação que delas nos
fazemos. Só assim poderemos, o leitor e nós, ter certeza de cogitarmos da
mesma idéia sempre que algum desses conceitos for aludido neste ensaio. Teremos
de aceitar, inclusive, o risco de repetição de algumas obviedades.
O
instituto da coisa julgada emerge de um imperativo político: a própria
atividade jurisdicional não poderia realizar seus precípuos objetivos se não
chegasse um momento para além do qual o litígio não pudesse prosseguir. É
imprescindível colocar‑se um limite temporal absoluto, um ponto final
inarredável à permissibilidade da discussão e das impugnações. Sem isso, a
jurisdição resultaria inútil e não valeria senão como exercício acadêmico,
já que permaneceria indefinidamente aberta a possibilidade de
rediscutir‑se o decidido, com as óbvias repercussões negativas sobre a
estabilidade das relações jurídicas.[2]
A essa necessidade responde a coisa
julgada formal, a identificar‑se com a irrecorribilidade e decorrente
impossibilidade de continuar‑se a demandar sobre o mesmo objeto. Nesse
sentido, a coisa julgada pode ser vista como preclusão -
a última, a máxima e a mais abrangente das preclusões, a incidir sobre o
processo mesmo e não sobre um ato dele.
Mas não é só. A decisão assim
tornada final (pela inimpugnabilidade, seja decorrente do exaurimento dos
recursos interponíveis, seja da omissão do seu emprego) torna‑se a lei
do caso concreto. Não apenas adquire a "força de lei" de que falam
os Códigos, mas toma o lugar da lei, substituindo‑a no que diz com a
particular relação considerada. Lei do caso concreto, prevalecerá a sentença
sobre a norma abstrata, se discordantes. Isso, é bem de ver, já não diz
respeito à sentença e ao processo, mas à relação de direito material que
fora res iudicanda, objeto do
processo, e que já não se governa pela regra genérica emanada dos órgãos
legiferantes, mas pela lex specialis,
concreta como o próprio caso, que a jurisdição produziu. A esse fenômeno é
que se deve denominar, exata e propriamente, coisa julgada material, a verdadeira
coisa julgada. Para a designação dessa realidade, parece mais adequada a
denominação "caso julgado", preferida em Portugal.[3]
3. As afirmações que vêm de ser
feitas conduzem‑nos inelutavelmente a uma clara tomada de posição em
prol de uma concepção substancialista (para usar o rótulo consagrado) da
coisa julgada material, sem embargo do respeito pela volumosa e qualificadíssima
doutrina aqui e alhures professada em contrário.[4]
Não apoiamos essa opinião sobre
os fenômenos, sempre trazidos a lume quando se cuida de discutir o tema, da
"sentença injusta" e da já mencionada "força de lei"
atribuída à sentença trânsita em julgado; nem mesmo pedimos argumento aos
casos de enchimento de lacunas da lei. Pensamos, isto sim, que,
independentemente de ocorrências excepcionais e talvez anômalas, a sentença
firme toma o lugar antes ocupado pela lei, se existia e era adequada ao caso
concreto, ou enche‑lhe o vazio na hipótese contrária. Em qualquer caso,
eliminando a incerteza e operando a “exclusão de alternativas possíveis”
de que se ocupou CASTRO MENDES,[5]
a res iudicata
torna até impertinente ou no mínimo irrelevante toda discussão em torno da
"justiça" (na verdade, conformidade ao Direito preexistente) da
sentença nela abroquelada. Esta passa a integrar o sistema jurídico e, no que
diz respeito ao caso concreto, com exclusividade. O vencido a ela se submete não
por concordar com seu teor, mas por ser ela, para a fattispecie
considerada, expressão única da vontade do Estado e, portanto, o único
Direito possível. A parte malsucedida pode manifestar seu desgosto e até sua
indignação em roda de amigos; os juristas podem alongar‑se em doutas e
fundadas críticas ao julgado em publicações especializadas; outros juízes e
até aquele mesmo que sentenciara podem formar opinião contrária à solução
passada em julgado: nada disso tem a menor relevância jurídica;
nenhuma dessas reações terá o mínimo reflexo sobre a disciplina da relação
jurídica anteriormente controvertida.
Dizer‑se que a doutrina
material explica bem a sentença injusta (tida como anomalia, subproduto indesejável
mas inevitável do sistema) e mal a sentença justa (vista como normal) é
falsificar‑se a problemática envolvida por ignorar‑se que, no plano
da autoridade do julgado -
único que interessa à conceituação da coisa julgada - não cabe sequer
falar‑se da possível existência de sentenças "injustas", pois
o único órgão ou instituição capacitado a dizer da justiça ou injustiça
das soluções cogitáveis já foi chamado a falar e já pronunciou, ex
hypothesi, sua última palavra. De resto, a conformidade teórica entre a
sentença e o ordenamento jurídico precedente seria ideal dificilmente atingível,
e até seria de questionar se é esse um objetivo desejável. Por vários
motivos, entre eles os que se alinham a seguir.
a) A Justiça dos homens, obra
humana, é falível, e seria despropositado imaginar‑se um juiz dotado de
inerrância.
b) As partes nem sempre se dispõem
a propor, iluminar, discutir e pôr à prova todos os aspectos da controvérsia;
ao contrário, quase sempre sonegam, conscientemente ou não, parcelas
importantes dela.
c) Há dificuldades e limitações,
inclusive de ordem legal, à busca do valor Justiça como um absoluto, assim
como há desequilíbrios e disparidades na forma e na intensidade pelas quais
essas adversidades pesam a cada uma das partes.
d) A reconstituição dos fatos,
que no processo se faz pela via da prova, é de baixa confiabilidade em termos
de correspondência com a verdade real.
e) A própria identificação da
norma aplicável aos fatos apurados é freqüentemente vacilante e imprecisa,
dependendo de esforços de interpretação e integração que se refletem em
julgados divergentes sobre pressupostos fáticos idênticos. Dados um decisório
que julgou anulável a venda feita por ascendente a descendente sem consulta
aos demais, e fez corresponder à hipótese uma prescrição de quatro anos, e
outro que declarou inexistente ato dessa natureza e imprescritível a pretensão
à declararão de inexistência -
qual a sentença "justa"?
f) O próprio “ordenamento jurídico
preexistente” pode ser intrinsecamente injusto, e portanto justa a sentença
que o contraria.
Tudo bem pesado, o que menos se há
de esperar que ocorra é a exata, completa e constante correspondência da qual
se fala, a saber, a pura e precisa ''declaração'' pelo juiz de ser este ou
aquele o Direito do caso concreto segundo um padrão previamente definido em
abstrato. Nem mesmo se pode dizer seja isso desejável, por implicar a redução
da figura do juiz à inaceitável lex
loquens da metáfora célebre. O juiz faz o Direito tanto quanto o
legislador, ainda que em plano distinto e com outros instrumentos, retomando a
tarefa onde a deste se esgotou. A lei é obra incompleta, esquemática, sem
aptidão para prefigurar e solucionar ex
ante cada espécime de litigiosidade emanado da variedade inesgotável da
vida. Por isso, “no fundo, o significado da doutrina material é que a
sentença contém um regulamento constitutivo da relação por ela acertada”.[6]
Quando vai buscar no Olimpo
das abstrações a norma a ser aplicada, o juiz não se limita a identificá‑la
e interpretá‑la: amolda‑a, recorta‑a, ajusta‑a às
peculiares necessidades do caso -
não para usurpar, mas para complementar, na medida e forma em que só ele o
pode fazer, o trabalho do legislador. E a esse mesmo trabalho, de resto,
presta subsídios e indicações para utilização futura, mercê do conhecido
fenômeno de realimentação reciproca entre as atividades legislativa e
jurisdicional.[7]
Compreende‑se que o temor do
arbítrio judicial possa suscitar resistências e restrições a essa visualização
do problema. Mas é preciso considerar o processo que temos, não o que gostaríamos
de ter. Até mesmo para poder‑se aspirar a seu aperfeiçoamento, temos de
examinar o processo que é.
4. Resulta claro, pois, que não
aderimos à sugestão de ver‑se coisa julgada só
como “qualidade da sentença”, ou "qualidade dos efeitos da sentença."[8]
Insistimos em que a qualidade (de ser imutável) melhor se situaria na conceituação
formal da coisa julgada, pois significa determinada condição ou atributo que o
ato jurisdicional assume em certo momento,[9]
dizendo respeito, pois, a esse ato, dele não se podendo desprender (mera
qualidade que é) e não passando, ao fim e ao cabo, de fenômeno rigorosamente
endoprocessual, inepto para explicar fenômenos como, por exemplo, a imunidade
aos efeitos da lex nova (Constituição
Federal, art. 5º, inc. XXXVI; Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º).
Vista como qualidade da sentença
apenas, a coisa julgada é ainda mera preclusão. De fato, enquanto atributo
da sentença, a imutabilidade falada é dado sem dúvida relevante, que evolui
em três graus, mínimo, enquanto recorrível a decisão; médio, se já
irrecorrível mas ainda rescindível em tese; máximo, quando a própria
rescisão seja ou se haja tornado incabível.[10]
Mas tudo isso se passa no mundo do processo, ainda que se valorize sua projeção
para além dos limites de um determinado processo, individualmente
considerado.
O que se precisa ver é que, como
conseqüência do trânsito em julgado (e, pois, como seu efeito),
produz‑se um fenômeno fora do processo e do Direito Processual, a saber:
a relação de Direito Material entre as partes subtrai‑se à regência
da norma genérica (se é que existia alguma) e submete‑se com
exclusividade à força do comando específico contido na sentença. Esse fenômeno,
mais facilmente visível quando a sentença é constitutiva, em verdade ocorre
sempre (até mesmo por ser toda sentença em alguma medida constitutiva). Não
importa indagar - nem o sistema admite que se
indague! -
da conformidade ou inconformidade entre a "lei do caso concreto" (comando
da sentença) e a norma genérica precedente (se existia, o que também é
irrelevante). O possível descompasso entre uma e outra é juridicamente
indiferente (salvo, talvez, do ponto‑de‑vista da rescindibilidade,
que em nada afeta o conceito de res iudicata),
porque a definição em concreto da relação jurídico‑material terá
sobrepujado e neutralizado a possível normalização abstrata anterior,
tomando‑lhe o lugar.[11]
Desde que estejamos advertidos dos perigos de toda metáfora, não podemos
negar razão aos velhos romanistas quando atribuíam ao julgado o condão de
fazer de quadro rotundo. E isso não
é qualidade, é efeito. A qualidade só vive presa ao objeto qualificado; o
efeito dele se destaca e adquire vida própria.
O problema é, em parte considerável,
terminológico, e radica em que, a partir de certo momento, as palavras "efeito"
e "eficácia", quando associadas à idéia de sentença, passaram a
designar, com exclusividade, as eficácias ou efeitos a partir dos quais se
classificam as sentenças e as ações (declaratória, condenatória e
constitutiva, ou essas mais a mandamental e a executiva). A restrição é
arbitrária, porque os efeitos a que se associam essas "cargas'' não
esgotam nem mesmo se aproximam de esgotar o elenco dos efeitos possíveis do
ato sentencial. Estes se produzem em vários planos e são passíveis de
classificação segundo critérios diversos.[12] E uma das afirmações
possíveis sobre os efeitos é esta: o imediato efeito do transito em julgado da
sentença (formal, significando irrecorribilidade) é tornar a res
iudicanda em res iudicata, com o efeito reflexo, mediato, sobre o Direito
Material, de fixar e estabilizar a relação jurídica nos termos definidos
pelo decisum. Essa qualificação jurídica
da fattispecie vale para o próprio
processo em que se formulou, para outros processos e para "a vida, pela
respeitabilidade da eficácia da sentença."[13]
Eficácia que não é aí a declarativa, constitutiva, condenatória ou outra
pertencente ao mesmo critério de classificação, mas eficácia concebida em
outra ordem de idéias, como atributo natural do julgado enquanto ato de
soberania e independentemente de sua ''classificação quinária": a
autoridade do ato estatal definitivo do direito do caso concreto.
Uma consideração ainda se faz
necessária. A coisa julgada material é mais do que a sua face negativa (vedação
de novo debate judicial da mesma lide): é também, e até principalmente, o
dado positivo da introdução de um componente novo na relação jurídico‑material
sobre a qual recaiu sua autoridade. "Toda eficácia do caso julgado (...)
pode traduzir‑se em duas ordens de efeitos: pode impedir a colocação no
futuro da questão decidida ou pode impor a adoção no futuro da solução que
a decidiu. Os fenômenos são diferentes e não apenas nos fundamentos -
são formas distintas de eficácia do caso julgado. Com efeito, tal eficácia
pode consistir num impedimento, proibição de que volte a suscitar‑se no
futuro a questão decidida -
e estamos perante aquilo que chamamos função negativa do caso julgado, ou pode
consistir na vinculação a certa solução - e estamos perante a função
positiva. No primeiro caso, o dever é de non
facere, non agere, não discutir; no segundo caso, o dever é de facere
ou agere, tomar como subsistente a solução julgada."[14]
5. A revisabilidade das sentenças
sobre alimentos atende a imperativo emergente da natureza mesma da prestação
e dos pressupostos e critérios universalmente aceitos para sua imposição e
quantificação. Ainda na suposição de que não existissem o art. 401 do Cód.
Civil de 1916 e o art. 15 da Lei de Alimentos, a necessidade de se manterem
sempre abertos aos interessados meios de ajustamento da obrigação às variações
de fortuna de qualquer deles haveria de impor a revisabilidade.
Essa imperativa exigência da vida
propõe um desafio ao jurista. Se os vínculos jurídicos de conteúdo alimentar
podem ser e geralmente são tratadas em Juízo e resolvidas mediante sentença,
e posto que as sentenças conduzem à res
iudicata, o problema que se coloca é o de conciliar a imutabilidade, ingrediente
conceitual do caso julgado, com essa permanente possibilidade de reexame.
O texto do art. 15 da Lei nº 5.478
implica renúncia a qualquer veleidade de solucionar a questão no plano da dogmática
jurídica ou do enquadramento técnico da situação proposta. O legislador
optou pelo corte do nó górdio, face à aparente impossibilidade de seu desate.
Acomodou‑se, de resto, à doutrina anteriormente aludida, que seguia a
mesma linha de menor resistência consistente em contornar o problema sem solucioná‑lo
(retro, nº 1).[15]
Afirmar‑se, porém, que
alguma sentença não faz coisa julgada é temeridade, e incluir‑se tal
assertiva em texto legal chega a ser leviano. Bem mais prudente (talvez
demasiadamente prudente) foi o legislador dos Códigos Nacionais de Processo
Civil de 1939 e 1973 (arts. 289, II, e 471, I,
respectivamente),
embora não haja logrado ele mesmo a elaboração de textos inteiramente aceitáveis
do ponto de vista técnico‑jurídico. Um e outro desses dispositivos, após
reafirmar (desnecessariamente) o princípio geral da vedação de nova decisão
da mesma lide, abrem exceção para o caso em que "o juiz tiver decidido de
acordo com a eqüidade determinada relação entre as partes, e estas reclamarem
a reconsideração por haver‑se modificado o estado de fato" (texto
de 1939) e "tratando‑se de relação jurídica continuativa,
sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a
parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença" (Código de
1973).
A aparentemente singular ocorrência
de situação na qual a autoritas rei iudicatae seria quebrada, ou pelo menos abrir‑se‑ia
exceção ao principio geral da imutabilidade, conduziu a doutrina (e, já se
viu, a legislação) a supor que aí estariam sentenças (no mais estrito
sentido de “decisão final de mérito, válida, normal e regular, proferida em
processo civil contencioso de declaração”)[16]
sem aptidão para a produção de coisa julgada material.[17]
6. Várias objeções podem ser
levantadas, porém, contra a assertiva legal. A primeira e mais intuitiva
seria a de que, sem trânsito em julgado, a sentença não seria exeqüível,
pelo menos em caráter definitivo, e tanto bastaria à configuração de um
absurdo, qual seja, uma forma absolutamente frustrânea e despropositada de
exercício da jurisdição. Sem formação de coisa julgada, de resto, a
sentença resultaria desprotegida relativamente ao influxo da lei nova, já
que a norma constitucional assegura imunidade à res
iudicata, não à sentença mesma.
Tudo
indica, pois, que se trata de texto legal cujas palavras vão além da idéia
que se quis expressar, tendo o legislador, sob a influência de doutrina
descuidada e superficial, tomado o todo pela parte, com os olhos postos em uma
das propriedades da coisa julgada -
certamente a mais importante, mas não a única - e sem perceber o vazio que
estaria criando relativamente a outros aspectos de sua eficácia.
Pretendeu‑se em verdade apenas assegurar a possibilidade de revisão do
conteúdo da sentença. Pôs‑se a pique o barco para destruir a parte da
carga que não convinha transportar. Como que se decompôs a eficácia, que é a
coisa julgada, em frações dessa eficácia, para afastar‑se uma destas,
sem levar‑se em conta, na formulação da regra correspondente, a permanência
das outras.
Para
explicar‑se o que realmente se passa onde parece haver exclusão da coisa
julgada -
seja com pertinência à sentença de alimentos, em particular, seja na
perspectiva mais ampla do exame das sentenças ditas "determinativas"
em geral -
numerosas e variadas sugestões têm surgido na doutrina. Examinaremos, dentre
elas, as que aparentam melhor embasamento e alcançam adesões mais expressivas.
7. Apoiando-se em construção
original de KISCH,[18]
CARNELUTTI[19] imaginou poder‑se
explicar o peculiar regime a que se submetem a sentença e a coisa julgada, em
hipóteses que tais, pela distinção, dita fundamental, entre processo declarativo
e processo "dispositivo", categoria esta em que se incluiriam os
originadores de sentenças também dispositivas, ou determinativas. Ao contrário
do que ordinariamente ocorre no processo declarativo, onde o juiz se limita a
identificar e aplicar norma jurídica, cumprindo a função correntia da jurisdição,
nesta outra hipótese o julgamento envolveria margem mais larga de arbítrio
judicial, face à incompletude ou mesmo à ausência de critério legal
orientador da decisão. Na falta de regra material suficientemente precisa e
completa, entraria em atuação uma "norma instrumental" que
autorizaria o juiz a compor o litígio segundo critérios seus, coerentes com o
sistema mas não contidos nele em forma expressa. No "processo
dispositivo", por outras palavras, o poder criador do juiz apareceria
notavelmente ampliado, por não haver o legislador formulado em sua plenitude a
regra de Direito Material a ser aplicada: a discricionariedade judicial se
alargaria na mesma medida em que a predeterminação legislativa das conseqüências
jurídicas do fato se retraísse. Em contraposição às situações comuns do
"processo declarativo", em que essas conseqüências acham‑se
completa e claramente definidas na lei, a sentença dispositiva estabeleceria,
com a autorização de norma instrumental especifica, a regulamentação jurídica
da fattispecie.
Nessa maior liberdade de criação
deixada ao julgador estaria a justificação da mutabilidade do julgado, já que
ditado segundo determinantes outras que não as estabelecidas rigidamente na
lei. À mais larga discrição do juiz corresponderia permissão também mais
ampla de modificação ulterior do decidido.
A isso se respondeu que a suposta
classe das sentenças dispositivas não guarda homogeneidade classificatória
com os critérios de distinção entre sentenças declarativas, condenatórias e
constitutivas, podendo qualquer destas entrar naquela categoria, vale dizer, não
poderia ser uma classe nova que se acrescentasse àquelas outras porque a nota
distintiva, pertencente a outra ordem de idéias, não impediria a inclusão da
sentença dita dispositiva em uma das três classes tradicionalmente
reconhecidas. Mais, ponderou‑se que essa discricionariedade judicial está
igualmente presente, em grau variável, em outras relações jurídicas
ordinariamente submetidas a julgamento (por exemplo, quando se decide da má‑fé,
do dolo, da coação, etc.), sem que isso tenha repercussão alguma sobre o
regime de imutabilidade da res iudicata.
E, ainda, que o discricionário diz respeito, mesmo no chamado processo
dispositivo, a apenas um ou alguns dos elementos ou aspectos da relação jurídica
controvertida, e não à sua integralidade (v.
g., ocorre certa discricionariedade relativamente ao quantum
dos alimentos ou ao rumo da passagem forçada, mas não quanto à obrigação
alimentar ou ao direito de passagem considerados em si mesmos).[20]
O grau de arbítrio que o Direito Material, aliás, deixa ao juiz, relativamente
a cada categoria jurídica, é uma variável contínua, não servindo, pois,
como referência útil à pretendida distinção entre processo
"declarativo" e processo "dispositivo".
Não será, pois, na
discricionariedade que se haverá de encontrar a justificação para o especial
tratamento dispensado às sentenças de alimentos ou, mais amplamente, aquelas
ditas "determinativas". Aliás, se até existem casos em que o juiz
revela a norma, inexistente ou apenas implícita no sistema, suprindo a
chamada "lacuna" (Dec.‑Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942,
art. 4°; CPC, art. 126), e nem por isso se põe em dúvida a aptidão dessa
sentença para formar coisa julgada, não se compreenderia a dispensa de outro
tratamento às hipóteses em que a norma é explicita, embora deixando ao juiz
margem de arbítrio mais larga que a usual.
8. Também se tenta explicar as ações
de modificação como autorizadas por uma pretensão do réu, posterior ao
julgado, ao modo das defesas que se deduzem por exceção ou pela via dos
embargos. Na vigente legislação brasileira, a figura a que se poderia tentar
essa aproximação seria a dos embargos segundo o art. 741, VI. do CPC.
Ligeiramente diversa, mas não o suficiente para merecer trato em separado, é a
linha de raciocínio que vê na ação de modificação uma conditio
liberationis que a própria sentença já teria contemplado, porque nela
está implícita ou explícita a consideração de ser executável segundo as novae
causae que se vierem a apresentar.[21]
O reparo primeiro a ser feito a
tais tentativas de explicação é este: elas só contemplam a eficácia
executiva do julgado anterior, quando em realidade é sua substância mesma,
integral, que se põe em cheque ao buscar‑se nova manifestação
jurisdicional sobre idêntica lide. Nem é verdade que alguma particularidade
das sentenças ditas “determinativas” deixe entrever qualquer ressalva ou
reserva quando à executabilidade.
De outra banda, ver‑se a
modificabilidade apenas pelo ângulo em que ela é favorável ao réu (verbis,
exceção, embargos) é desconsiderar o fato de que a correspondente iniciativa
pode partir também do autor (como na ação de majoração da verba alimentar):
a revisabilidade é via de mão dupla. Idêntica objeção pode‑se fazer
à sugestão segundo a qual a obrigação alimentícia imposta (ou reconhecida
por acordo homologado) e tão-somente a de prestar determinada soma por unidade
de tempo, assim se podendo explicar a modificabilidade do quantum.[22]
A ação de modificação, em realidade, pode dirigir‑se contra a obrigação
mesma, para extingui‑la (ação de exoneração) e nem mesmo é de
excluir‑se a priori uma possível
"ação de inversão" da prestação alimentar, na hipótese de se
haverem tão profundamente alterado a condição do alimentante e a do
alimentando que passe a necessitar aquele da pensão, enquanto este se torna
apto não só a dispensá‑la, mas a assumir, por sua vez, encargo da mesma
natureza.[23]
9. Não alcança melhor sorte a
explicação segundo a qual a alterabilidade atenderia a um imperativo de
"exceção eqüidosa" à coisa julgada, nem mesmo quando conjugada
à idéia de uma injustiça manifesta e superveniente, resultante de haver a
sentença projetado sua eficácia para um futuro então ainda desconhecido
quanto aos dados fáticos nele situados. Segundo essa visão do problema, a
perspectiva do juiz ao proferir o julgamento capaz de alcançar fatos
ignorados contém a virtualidade de uma injustiça, que se materializa no porvir
e reclama correção por meio de um ataque à coisa julgada.[24]
Ora, o aceno à eqüidade para opor
restrição à coisa julgada é de todo impertinente porque, a valer, criaria o
risco de inutilização do próprio instituto e deixaria indefinidos os
limites em que tal "exceção eqüidosa" poderia ocorrer. Quanto à
"injustiça" da sentença, mesmo superveniente e resultante que fosse
de imprevisibilidade (e tal não é o caso), já se disse o suficiente neste
ensaio para demonstrar que a "justiça" da decisão não é
pressuposto nem condição da firmeza da coisa julgada.
10. Seria a ação de modificação
um remédio excepcional de agressão à coisa julgada, capaz de infirmar a própria
sentença a partir de uma completa revisão da relação jurídica
controvertida? Se tal fosse o caso, ela se assemelharia aos juízos de restituição
dos quais há antecedentes históricos e exemplos no direito comparado; no
sistema jurídico nacional, o parentesco possível seria com a ação rescisória,
que tem naquele instituto uma de suas vertentes históricas. Como a anterior,
esta sugestão tem sobre as outras já examinadas a vantagem de evitar a
assemelhação aos embargos e exceções tardias, cobrindo também, portanto,
a legitimação do autor da ação anteriormente julgada, e não apenas a do réu
vencido, já que o remédio se levanta contra a sentença mesma e não contra a
execução dela apenas.[25]
As causas de rescisão das sentenças,
porém, são e precisam ser rigidamente especificadas em numerus
clausus pelas regras legais. Qualquer dilatação ou interpretação
extensiva, em tal matéria, comprometeria o interesse público prevalente da
estabilidade dos julgados e desconsideraria a excepcionalidade intrínseca dos
remédios rescisórios.
Também é e ver‑se que a ação
de modificação não se destina a destruir ou apagar do mundo jurídico a
sentença, cuja eficácia, com o novo julgamento, não se oblitera quanto aos
efeitos já produzidos. Não se equiparam seus efeitos aos da rescisão do
julgado. A nova sentença, na ação de modificação, altera ex
nunc a regulação jurídica da relação, mas não desconstitui a eficácia
que a anterior já produzira. Rigorosamente, aquela a esta não se contrapõe,
mas se soma. Já o rescindir tem muito de comum com o anular (embora sem
completa identificação); em regra, aquilo que veio a ser rescindibilidade fora
antes nulidade ou anulabilidade; de todo modo, nela está presente a idéia de
desconstituição.[26]
Como na sentença da ação de
modificação não há desconstituição, nem mesmo substituição em sentido
próprio, também não será pela identificação à rescisória ou restitutória,
ou a qualquer outro remédio excepcional de revisão assemelhável, que se há
de explicar aquela ação.
11. O grande processualista
uruguaio EDUARDO J. COUTURE, de cuja obra é preciso acercar‑se sempre
com respeito e cujas propostas merecem, por isso mesmo, exame acurado, situou
na limitação da própria coisa julgada à sua concepção formal a explicação
da mutabilidade das sentenças "determinativas". A solução é
sedutoramente singela: tais sentenças fariam apenas coisa julgada formal e não
coisa julgada material, vista essa distinção segundo o critério corrente de
projetar‑se ou não a imutabilidade para além dos limites do processo.
“A primeira admite o reatamento do debate e nem por isso deixa de ser coisa
julgada. A segunda, essa sim, encerra definitivamente toda a possibilidade de
debate posterior.” E, logo adiante: “Hoje em dia é possível dizer com
relativa precisão que, quando uma sentença já não pode ser objeto de recurso
algum, mas admite a possibilidade de modificação em processo posterior, está‑se
em presença de uma situação de coisa julgada formal. E quando, à condição
de inimpugnabilidade, mediante recurso, se agrega a de imutabilidade em
qualquer outro processo posterior, diz‑se que existe coisa julgada
substancial, já que então nada, nem ninguém, poderá modificar, em tempo
algum, o decidido."[27]
A proposta desafia graves objeções.
Rigorosamente, sequer se deveria
empregar a expressão coisa julgada para designar aquela dita formal, pois o fenômeno
é estritamente endoprocessual e só distinguível da preclusão quando se
recorre a refinadas sutilezas semânticas.[28]
E, em se tratando de sentença final de mérito, proferida em regime de cognição
plena em processo declarativo lato sensu,
não parece razoável pensar‑se em coisa julgada exclusivamente formal,
seja ela vista como a preclusão mesma, como um efeito ou como uma decorrência
dela. Em última análise, tal assertiva equivale à do infeliz art. 15 da Lei
de Alimentos, pois dizer‑se de uma sentença que ela apenas "transita
em julgado", torna‑se irrecorrível e só por isso e só nessa medida
se faz imutável, é negar a presença de coisa julgada no que ela tem de mais
próprio e essencial, como ponto culminante do exercício da jurisdição.
Trata‑se, de resto, de uma
proposta que não explica a origem e a razão da anormalidade. Não se fica
sabendo qual a peculiaridade dessa sentença que lhe amputa a potencialidade de
fazer coisa julgada material. Admite‑se que ai ocorre uma anomalia mas não
se lhe identifica a fonte. Restam igualmente inexplicados alguns atributos, presentes
em tais sentenças, ligados pelo menos em regra ao caso julgado material que as
deveria, então, recobrir, tais como a executabilidade, a rescindibilidade e a
imunidade aos efeitos da lex nova.
Mais uma vez, recaímos na estranha situação em que se nega a presença da
coisa julgada (a verdadeira, isto é, a material) com os olhos postos apenas no
seu aspecto mais perceptível, que é a estabilidade do julgado, desconsiderados
outros que lhe são igualmente intrínsecos e não se ausentam.
12. Não é raro encontrar‑se
na doutrina e nos julgados o asserto segundo o qual o problema todo da coisa
julgada em ações de alimentos estaria em separar‑se o componente
"determinativo" da sentença daquele outro "declarativo"
da obrigação de prestar alimentos, a fim de excluir‑se do alcance da res
iudicata apenas aquele primeiro e não este. Argumenta‑se que o quantum da prestação é eminentemente variável e por isso imune
ao principio geral da imutabilidade, mas sem ocorrer o mesmo relativamente ao
conteúdo "declarativo"; o mesmo raciocínio levaria a que a sentença
denegatória dos alimentos postulados, sendo declarativa stricto sensu como toda sentença de improcedência, teria a força
normal de julgado, sem restrição alguma.[29]
O equivoco é manifesto, e provavelmente radica no erro em que incidiu
CARNELUTTI quando pensou ver no componente "determinativo" da sentença
alimentar algo distinto e alinhável na mesma classificação dos elementos
declaratório, condenatório e constitutivo, como se fossem todos categorias
diversas mas homogêneas para efeito de classificação (retro, n° 7 e nota
19). Já se viu que essa doutrina é insustentável, encontrando refutação
cabal conforme então ficou exposto.
Ora, a variante agora cogitada é
ainda mais inaceitável. É absolutamente falso que só o quantitativo seja
passível de revisão; que a obrigação de alimentar seja em si mesma imodificável
e que a sentença de improcedência não comporte a ação revisional. Tal qual
ocorre com o montante da pensão, a própria existência e permanência da
obrigação submete‑se a essa mesma instabilidade: afirmar‑se o
contrário é ignorar‑se a corriqueira ação de exoneração de
alimentos. Mais: se o pedido alimentar for desestimado por não necessitar deles
o autor ou por não poder prestá‑los o réu, qualquer dessas constatações
sentenciais referem‑se tão‑somente ao momento em que foram
feitas, de sorte que, se o autor vem a cair na miséria ou o réu a prosperar,
outra demanda de alimentos, em que se invoque a nova situação, pode alcançar
êxito, sem embaraço algum resultante da anterior sentença de improcedência
(exclusivamente "declaratória", destituída do falado componente
"determinativo"). Ainda mais: suficientemente profundas que sejam as
intercorrentes modificações de fortuna de uma ou outra parte, ou de ambas, não
é de excluir‑se sequer a possibilidade de uma verdadeira ação de inversão
da obrigação alimentar, de tal modo que, a mais de exonerar‑se do
encargo, venha a perceber alimentos quem antes os prestava e a pagá‑los
quem os recebia. O principio da reciprocidade, conjugado à transformação
ocorrida nas referências básicas de necessidade e possibilidade, com pertinência
ao caso concreto, faz perfeitamente viável essa eventualidade.
Admitindo‑se que essa última
hipótese seja de rara ocorrência, e quiçá mesmo um tanto bizarra, as
considerações anteriores, contudo, versando espécies correntes no
dia‑a‑dia do foro, seriam suficientes para afastar qualquer solução
que implique a idéia de estabelecimento ou não de coisa julgada secundum
eventum litis ou somente sobre "parcelas" em que se decomponha a
sentença.
13. A verdade é que nada há de
particular ou de especial com as sentenças "determinativas", ou mais
restritamente com as de alimentos, e com sua aptidão para a constituição de
coisa julgada. Não há exclusão ou sequer, como algumas vezes foi sugerido,
"atenuação" do principio geral, submetendo‑se essas decisões
ao regime comum dos julgamentos de mérito no que concerne à res
iudicata.
O processo e a sentença apanham
sempre, como se fotografassem, imobilizando, determinado momento da relação
jurídica (momento que pode ser o da propositura da demanda, o da litiscontestatio,
o do saneamento, o da própria sentença ou outro, segundo variáveis que não
cabe analisar aqui e de todo modo estarão cristalizadas em disposição
legislativa). Tudo o que venha a ocorrer depois desse momento - visto que do juiz não se
podem esperar poderes divinatórios - está fora do alcance da
sentença e da coisa julgada, por tratar‑se de dados a cujo respeito, por
hipótese, não se exerceu cognitio e
ainda menos iudicium.
Dependendo do maior ou menor grau
de dinamismo e mobilidade que a relação jurídica acertada possua, o estado
dela, que se cristalizou na sentença, terá maior ou menor permanência,
assim como a fotografia guarda similitude com o objeto fotografado por um tempo
mais ou menos longo, segundo se trate de coisa mais ou menos mutável. A
imagem fixada do pássaro em pleno vôo é tão fiel ao modelo quanto a da
montanha sólida e inamovível; a subseqüente falta de correspondência,
extremamente variável de um para outro exemplo, decorre da mutabilidade do
objeto e não da qualidade de sua representação fotográfica.
As relações jurídicas têm,
igualmente, diferentes graus de variabilidade. Como em relação às coisas do
mundo físico, seria arbitrário classificá‑las em "mutáveis"
e "estáveis"; tem‑se de falar em graus, referidos, quando
muito, a um parâmetro convencional de média estatística, eis que se trata de
uma variável contínua. Assim, quando se fala de "relações jurídicas
continuativas", estamos abarcando nesse conceito todo um vasto universo de
relações, do qual só se excluem aquelas -
raras, aliás -
"instantâneas", comparáveis, em representação gráfica, ao ponto
geométrico.
O que ocorre, pois, com as relações
jurídicas de natureza alimentar não é um fenômeno único, ou sequer
excepcionalmente raro. Acontece, isto sim, que elas se costumam caraterizar por
duas qualidades aí em regra reunidas: a longa duração e um particular
dinamismo. A obrigação de alimentos, sobre alongar‑se, normalmente,
por muitos anos, sofre, também com notável freqüência, o influxo de alterações
constantes nas suas bases fáticas, naturalmente resultantes do próprio
dinamismo da vida de relação, afetando o fundamental binômio
necessidade‑possibilidade, que rege não apenas a medida da prestação,
mas também sua subsistência e ocasionalmente até mesmo o sentido em que
flui a relação de débito e crédito.[30]
14. Postas essas premissas, não há
necessidade alguma de se buscarem fórmulas dificultosas ou exceções aberrantes
dos princípios gerais atinentes ao caso julgado para explicar‑se a
chamada ação de revisão. Rigorosamente, todas as sentenças contêm implícita
a cláusula rebus sic stantibus,[31]
pelas razões que vêm de ser expostas quanto à superveniência de fatos novos
e até mesmo por simples aplicação dos critérios de identificação das
demandas.
Com efeito, todo o falso problema
resulta de não levar‑se em conta que a impropriamente dita ação de
modificação (para redução, majoração, exoneração ou mesmo inversão) é
outra demanda, fundada em causa petendi diversa da que estivera presente no processo anteriormente
julgado -
ou nos processos anteriormente julgados, pois já pode ter ocorrido mais de
um. Tem aqui a importância e a utilidade de sempre o princípio da "tríplice
identidade", segundo o qual a ação (no sentido impróprio de pleito
judicial) só é a mesma se coincidem os três elementos: pessoas, pedido e
causa de pedir.[32] Variando esta, outra é a
''ação''.
Nas ações de modificação, supõe‑se
a invocação, como causa de pedir, de uma transformação ocorrida no estado de
fato antecedente. Os tribunais, à evidência, recusariam atenção a pedido
modificatório baseado, v. g., em erro
de apreciação de prova ou de aplicação do direito, sem a introdução no debate
de qualquer dado novo capaz de configurar uma causa
petendi também nova. E o fundamento
da rejeição de tal demanda só poderia ser o da existência de coisa julgada,
nos exatos termos dos artigos 301, VI e 267, V, última hipótese, do CPC.
“Toda
sentença vale rebus sic stantibus,
dado que a alteração da causa de pedir permite a rediscussão das conclusões
nessa causa de pedir judicialmente assentes. (...) O art. 671, nº 2” (do CPC
português então vigente), “como norma sobre caso julgado material, seria uma
desnecessária repetição da regra segundo a qual o caso julgado só é eficaz
enquanto se não invoque alteração da causa de pedir; vale tanto dizer que,
condenada certa pessoa a prestar alimentos a outra, que precisa, pode pedir o
afastamento da condenação se esta deixar de os precisar, como estatuir que,
absolvido certo réu numa ação de propriedade, o autor pode mover de novo a
mesma ação, se posteriormente houver adquirido a propriedade.”[33]
Esse exemplo, extremamente
esclarecedor, demonstra inclusive que o caráter "continuativo" da
relação jurídico‑material posta em tela de juízo nem mesmo é necessário
à explicação da aparente anomalia das sentenças de alimentos. Elas se
submetem, na verdade, ao regime comum de todas as sentenças, quanto à sua
aptidão para fazerem coisa julgada, e esta sujeita‑se às mesmas, não a
outras, limitações que se impõem ao alcance temporal do julgado em todos os
casos. É dado nuclear do conceito de res
iudicata que esse alcance se contenha nos limites da lide e das questões
decididas. A ação de modificação claramente põe sob exame judicial, por hipótese,
outra lide e propõe questões diversas das examinadas no processo anterior, a
saber, as pertinentes às alterações intercorrentemente verificadas na situação
de fato.
15. Há uma questão que, meramente
terminológica embora, não deve ser negligenciada. São bem sabedores os
juristas da freqüência com que denominações impróprias ou imprecisas
contribuem para obscurecer conceitos e perpetuar equívocos que mais facilmente
seriam flagrados quando às idéias e aos fenômenos se fizessem corresponder
palavras exatas e semanticamente adequadas.
Assim, à luz das considerações
que vêm de ser alinhadas, a própria designação corrente -
ação de modificação -
traduz mal e enganosamente o verdadeiro objeto e o verdadeiro resultado que o
autor persegue. Na verdade, o anteriormente decidido não se modifica nem se
perde; a ele se segue, sem propriamente substituí‑lo, outro que examina a
relação jurídica tal como se apresenta agora. Não é o caso substancialmente
diverso daquele em que sentença trânsita em julgado, declarativa da
propriedade de dada pessoa sobre coisa determinada, deixa de corresponder à
verdade jurídica quando outrem vem a usucapir o bem, tornando possível novo
provimento judicial sobre o domínio, agora atribuído ao usucapiente. A ninguém
ocorrerá pensar, diante dessa situação, em "modificação" do
julgado anterior, ou em sua "adaptação" a fatos jurídicos ou à
vontade da lei.[34]
Não se trata, pois, de uma sentença
"que se modifica", pois ela permanece tão imutável quanto era antes,
ou quanto outra sentença qualquer. Trata‑se, sim, de nova
sentença, proferida em processo novo, instaurado a partir de outra ação
processual e com objeto próprio, porque diferente é a causa de pedir, como
diverso é freqüentemente o próprio petitum.
A ação, não é, pois, "de modificação''. É de nova regulação
jurisdicional da relação de Direito Material que, esta sim, modificou‑se.
Essa visão mais clara do problema,
obtida inclusive mercê do afastamento de terminologia inadequada, talvez chegue
a permitir a formulação de uma teoria mais completa dos limites da coisa
julgada. Ao lado das clássicas limitações objetiva e subjetiva, solidamente
estabelecidas na doutrina, pode ter chegado o momento de colocar‑se a
categoria dos limites temporais -
árdua e sedutora tarefa que deixamos sugerida aos mais capazes, até porque não
caberia nas coordenadas e objetivos deste ensaio.
16. Em resumo do exposto e à guisa
de conclusão, pode‑se estabelecer o que segue.
As sentenças proferidas em ações
de alimentos, como quaisquer outras, referentes ou não a relações jurídicas
"continuativas", transitam em julgado e fazem coisa julgada material,
ainda que -
igualmente como quaisquer outras - possam ter a sua eficácia
limitada no tempo, quando fatos supervenientes alterem os dados da equação
jurídica nelas traduzida. O disposto no art. 15 da Lei n° 5.478/68, portanto,
não pode ser tomado em sua literalidade. O dizer‑se aí que a sentença não
faz coisa julgada é, tão‑somente, um esforço atécnico e
mal‑inspirado do legislador para pôr em destaque a admissibilidade de
outras demandas entre as mesmas partes e pertinentes à mesma obrigação
alimentar. Essa interpretação, aliás, não desafina da impressão geral que
essa Lei produz, como uma das mais mal‑formuladas do nosso ordenamento
positivo.
Por tratar‑se de outras
"ações", em que a causa petendi,
sempre, e freqüentemente o petitum são
radicalmente diversos dos seus correspondentes na "ação" anterior,
nenhuma afronta ou restrição sofre o principio da imutabilidade da coisa
julgada. Esta perdura inalterada e soberana, embora uma nova sentença venha a
examinar e acertar a configuração também nova que a relação jurídico‑material
tenha assumido. Só caberia falar‑se de alteração do julgado, relativização
do princípio da imutabilidade, substituição da sentença ou sua adaptação a
fatos novos se fosse reapreciada e rejulgada a lide tal como se pusera
anteriormente em juízo, com os mesmos dados e configuração que apresentava
quando do julgamento primitivo. Mas a lide é claramente diversa, seja que o
alimentante postule minoração do encargo (ou sua extinção ou até mesmo
inversão), seja que o alimentando busque a majoração dos alimentos que
antes obtivera, ou a concessão dos que lhe haviam sido denegados.
Outrossim, se o art. 15 da Lei de
Alimentos diz demais, o próprio art. 471, I, do CPC repete o que, sem ele, resultaria
dos princípios, sobretudo aqueles relativos à identificação das demandas,
vitalmente importantes quando se trata de apurar o alcance da coisa julgada. O
que CASTRO MENDES afirmou relativamente a disposição similar do Direito
Português[35]
seria plenamente aplicável a esse texto legal.
O erro traduzido na letra do
aludido art. 15 tem sua origem em três suposições, todas equivocadas, a
saber: a) a de que a margem de arbítrio judicial, mais larga do que a mediana,
na prolação da sentença dita "determinativa" torná‑la‑ia
inapta para a produção de coisa julgada material; b)
a de que as relações jurídicas continuativas, como a de alimentos, seriam
igualmente incompatíveis com a estabilidade da res iudicata e c)
a de que os vários julgamentos que se podem suceder relativamente a uma certa
relação jurídico‑material examinariam a mesma lide e as mesmas questões.
Pensamos haver demonstrado que nenhuma dessas proposições é verdadeira.
Nossa tese central é a de que a
sentença de alimentos em nada se singulariza na comparação com quaisquer
outras e na perspectiva da coisa julgada material, sendo perfeitamente dispensável
qualquer disposição legal específica sobre o tema. Outrossim, mais do que
dispensável é errônea a norma tal como formulada no art. 15 da Lei n°
5.478/68. E, no curso da demonstração, verificamos que, mais amplamente, a
discutível categoria das sentenças "determinativas" ou "dispositivas"
não justifica a existência de qualquer regra especial sobre a coisa julgada,
tal como a do art. 471, I, do CPC, que nada acrescenta ou modifica relativamente
aos princípios gerais. Com efeito, nessas sentenças é apenas mais visível
a implícita cláusula rebus sic stantibus, na verdade presente em todas em maior ou menor
medida.
A
teoria dos limites da coisa julgada, até agora ocupada com os objetivos e
subjetivos, pode incluir também um exame da limitação de caráter temporal,
potencialmente capaz de proporcionar maiores luzes à análise dos temas
tratados neste ensaio.
(Agosto
de 1989)
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[1]
1 Cf. LOPES DA COSTA, Manual
Elementar de Direito Processual Civil, p.217 (3ª ed., 1932).
[2]
Cf. CHIOVENDA, Principii di Diritto
Processuale Civile, p. 907 (reimpressão, Nápoles, 1965). Esforços
notáveis têm sido empreendidos em busca de uma justificação estritamente
jurídica para o instituto da coisa julgada. Nenhum deles chegou a resultado
satisfatório, precisamente porque a justificação única possível é
política. Tanto isso é certo que são possíveis -
por bizarros que nos pareçam -
e deles há exemplos históricos e contemporâneos, sistemas jurídicos em
que as decisões, ou algumas delas, permanecem indefinidamente sujeitas à
revisão (cf. BARBOSA MOREIRA, "Eficácia da sentença e autoridade
da coisa julgada", in AJURIS,
nº 28, p. 18 ‑‑ iniciado à p. 15.
[3]
Embora o art. 467 do CPC faça menção expressa à coisa julgada material
e pretenda defini‑la, o conceito nele formulado fica mais próximo da
sua concepção formal, ao colocar a ênfase na imutabilidade ao invés de iluminar
o que se passa no plano do Direito Material. O artigo seguinte, sem dizê‑lo,
acerca‑se mais do verdadeiro conteúdo conceptual de que ora cuidamos.
Parece havê‑lo notado FREDERICO MARQUES, Manual
de Direito Processual Civil, 3° vol. p. 232 e 233; viu‑o
claramente ADA PELLEGRINI GRINOVER, no item 2 das "Notas ao § 1º”
da 2ª edição brasileira do volume de LIEBMAN Eficácia
e autoridade da sentença, p. 9.
[4]
Os argumentos contrários à nossa opção acham‑se expostos com
particular clareza por CELSO NEVES, Coisa
Julgada Civil, especialmente à p. 442, n° 11. Na doutrina italiana,
pesa a imensa autoridade de EMILIO BETTI, em especial no estudo "Cosa
giudicata e ragione fatta valere in giudizio", in
Rivista di Diritto Commerciale, ano 7 (1927), parte 1, p. 544 e s.: a
coisa julgada é instituto de Direito Processual mas leva sua eficácia ao
plano do Direito Material, visto afetar a relação por este regulada e
posta em juízo "através da pretensão que a representa". Quanto
às opiniões sobre a desimportância do tema (v.
g., OVÍDIO BAPTISTA, Curso de
Processo Civil, vol. I, p.
431), não as endossamos, eis que se trata, enfim, de saber o que é a coisa
julgada material. Não é demais lembrar, a propósito, que o grande
CHIOVENDA já dera por virtualmente encerrado o próprio assunto da coisa
julgada, iniciando conferência sua a adiantar que dela "direi muito
pouco e muito brevemente, porque sobre o vastíssimo tema pouco resta já
por dizer, que não seja inútil..." ("Sobre
la cosa juzgada", in Ensayos,
vol. III, p. 193) -
isso em 1905!
[5] CASTRO MENDES, Limites
objectivos do caso julgado em processo civil, especialmente p. 230 e s.
[6]
ALLORIO, "Critica della teoria del giudicato implicito', in Rivista
di Diritto Processuale Civile,
1933, II, p. 254 (iniciado à p.
245), retomando a sustentação feita dessa doutrina em La
cosa giudicata rispetto ai terzi,
p. 13. Ou, na expressiva lição de RAMOS MÉNDEZ, Derecho
Procesal Civil, p. 623:
“Si la cosa juzgada es el fin
del proceso, es que es esta la única verdad que humanamente se puede
obtener en el mismo. Por encima del dato de la ley, la cosa juzgada resuelve
el conflicto entre seguridad y justicia.” Ou ainda CHIOVENDA: “Juridicamente, a vontade
concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da
lei”. (Instituições, 2ª ed.
brasileira, vol. I, p. 44). Mesmo quem se filia à tese oposta não logra
furtar‑se à evidência: "Desde que o juiz é o órgão investido
pelo Estado na função de declarar o Direito para os casos concretos, a
decisão que ele proferir, depois de transitada em julgado, é a expressão
definitiva e irrevogável do direito objetivo na sua aplicação ao caso
particular sobre que incidiu a sentença." (ALBERTO DOS REIS, Eficácia
do caso julgado em relação a terceiros, p. 83). Aproxima‑se da
nossa posição BARBOSA MOREIRA: "O que se torna imutável (...) é o
próprio conteúdo da sentença, como norma jurídica concreta referida à
situação sobre que se exerceu a atividade cognitiva do órgão
judicial." ("Coisa julgada e declaração", in Temas
de Direito Processual, p. 59, iniciado à p. 31).
[7]
Sobre esse feedback entre
legislação e jurisprudência, vale conferir NIKLAS LUHMANN, "A Posição
dos Tribunais no Sistema Jurídico", in AJURIS, n° 49, p. 157
(iniciado à p. 149). De resto, "é consabido que o legislador quase
sempre só opera sobre os conteúdos jurídicos nascidos da atividade incessante
dos juízes e juristas." (PUIG BRUTAU, A jurisprudência como fonte do
Direito, p. 37 — no capitulo significativamente epigrafado "As
origens processuais do Direito Substantivo").
[8]
Parece ser esse o pensamento dominante na doutrina brasileira desde a
difusão dos estudos de LIEBMAN (principalmente os reunidos no citado volume
Eficácia e autoridade da sentença).
Contudo, depois de cortado o cordão umbilical entre efeito declaratório e
coisa julgada -
mérito indisputado de LIEBMAN -
talvez lhe tenha faltado dar um passo a mais, no sentido de finalmente e por
completo desvincular‑se a teoria da coisa julgada daquela outra da
eficácia da sentença, para admitir‑se que a imutabilidade é do próprio
conteúdo da sentença, e não dos seus efeitos, ou de um ou outro efeito em
particular (cf. BARBOSA MOREIRA, citado à nota 6).
[9]
HUMBERTO THEODORO JR., Processo de
Conhecimento, vol. 2, p. 668 e s.
[10]
FREDERICO MARQUES, Manual de Direito
Processual Civil, vol. 1, p. 247, fala, a esse propósito, de coisa
julgada (rescindível) em contraposição a coisa soberanamente julgada
(impassível já de rescisão). No particular, o Direito Brasileiro é
tecnicamente superior aos sistemas jurídicos europeus que não lograram
separar claramente o elenco dos recursos e aquele dos remédios excepcionais
de revisão, o primeiro pressupondo a inexistência de caso julgado, cuja
formação busca impedir, e o segundo a supor sua presença, eis que
destinado a desconstituí‑lo. Pode‑se conferir, a respeito, a
precisa lição de RAMOS MÉNDEZ, Derecho Procesal Civil,
p.737, criticando o instituto espanhol da revisión,
incluído entre os recursos, mas apresentando claros visos de rescisória.
[11]
"E1 pro veritate habetur no implica ningún juicio de correspondencia
con la verdad, sino expresa una orden de estabilidad e inmutabilidad, a
semejanza de lo estable e inmutable que es la verdad.' (DOMENICO
BARBERO, Derecho Privado, vol.
I, p. 377).
[12]
PONTES DE MIRANDA, que, mais do que ninguém, valorizou e divulgou entre nós
a classificação das sentenças pelo critério da prevalência de suas
"cargas", foi, de outra banda, quem mais claramente viu a
pluralidade das categorias de efeitos, entre os quais incluiu a coisa
julgada (Comentários ao Código de
Processo Civil de 1973, t. V, p. 122 e s.). E, censurando os excessos
a que LIEBMAN foi impelido pelo ardor da inovação, adverte que este
"prestou o serviço de cancelar a identificação" (entre eficácia
declarativa e força de julgado), "mas logo caiu no exagero de teorizar
a diferença entre eficácia e coisa julgada material. O que ele passou a
chamar de eficácia, restringindo o conceito, foi eficácia menos coisa
julgada material, com tanto direito quanto nós teríamos de chamar casa, de
agora em diante, só a que fosse feita de cimento armado."
[13]
PONTES, obra e t. cit., p. 126.
[14]
A lição é de CASTRO MENDES, Limites
objectivos... cit., p. 33‑9, acompanhada de remissão a NIKISCH,
Zivilprozesscecht, p. 407.
Confira‑se, outrossim, MONIZ DE ARAGÃO, Comentários
ao Código de Processo Civil, vol. II, p. 522, n° 517.
[15]
Monografia clássica, anterior à Lei nº 5.47S, dava o ponto como assente:
JOÃO CLAUDINO DE OLIVEIRA E CRUZ, Dos
Alimentos no Direito de Família, p. 103 (nº 43), embora rejeitando
mais adiante a simplificação, tida como expediente "para entendimento
comum de tais decisões" (p. 304). A doutrina mais antiga afirmava sem
ressalvas a inaptidão dessas sentenças para a formação de coisa julgada:
LOBÃO, Obrigações recíprocas,
§ 38; LAFAYETTE, Direitos de Família,
p. 277, nota 36.
[16]
O conceito, inexcedivelmente restritivo, é aquele a que se ateve o já
citado CASTRO MENDES, p. 13.
[17]
Por exemplo, na doutrina francesa, PIERRE GÉRVASIE, Pension alimentaire après divorce, p. 44: "...il n'y à jamais
de chose jugée..."; menos radical, LACOSTE, De la chose jugée en matière
civille, criminelle, disciplinaire et administrative, nº 32 e 33 (3ª
ed., Paris, 1914), assemelhando as sentenças de alimentos às decisões
provisórias; LOBÃO e LAFAYETTE, citados à nota 14; ainda hoje, entre nós,
VICENTE GRECCO FILHO, Direito
Processual Civil Brasileiro, 2º
vol., p. 232, com expressa assertiva de não fazerem coisa julgada, entre
outras que menciona, "as sentenças proferidas em ações de
alimentos".
[18]
Beitrage zur Urteilslehre,
p. 110 e s., apud LIEBMAN, Eficácia e Autoridade da Sentença, p. 23, nota b.
[19]
Sistema di Diritto Processuale
Civile, vol. I, p. 133.
[20]
LIEBMAN, obra e nota cit., p. 24‑5, embora fazendo concessão inaceitável
quanto à presença de dois comandos na sentença, com diferentes graus de
imutabilidade (infra, n° 12). Aproximadamente no mesmo sentido, BATISTA
MARTINS, Comentários ao Código de
Processo Civil, vol. III, p. 355 e
s., e PONTES DE MIRANDA, Comentários
e t. cit., p. 124, este observando que a peculiaridade não está na sentença,
mas na regra legal aplicada; ARRUDA ALVIM, Manual
de Direito Processual Civil, vol. II, p. 357; CELSO NEVES, Contribuição
ao estudo da coisa julgada civil, p. 482‑3. Até mesmo à chamada
"sentença normativa" trabalhista a doutrina tende a atribuir força
de coisa julgada: cf. CINTRA‑GRINOVER‑DINAMARCO, Teoria
Geral do Processo, p. 237; ADA PELLEGRINI GRINOVER, "Sentença
determinativa trabalhista", Revista
do Tribunal Regional do Trabalho da
5ª Região, n° 4, 1977; CATHARINO, Direito
do Trabalho, p. 222 e s.; COQUEIJO COSTA, Direito Judiciário do Trabalho, p. 55 e s. e 95 e s.
[21]
PONTES DE MIRANDA refere essas propostas surgidas na doutrina germânica
do início do século, para a seguir refutá‑las, em seus citados Comentários,
t. V, p. 195.
[22]
Cf. JOÃO CLAUDINO DE OLIVEIRA E CRUZ, Dos
Alimentos no Direito de Família. p. 256.
[23]
O "principio da reciprocidade" em matéria de alimentos é
sempre posto em destaque pelos especialistas, inclusive o citado OLIVEIRA E
CRUZ, à p. 30 da obra citada. Igualmente NELSON CARNEIRO, A nova ação de alimentos, p. 43; CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, Efeitos
do reconhecimento da paternidade ilegítima, p. 151‑2.
[24]
Essas sugestões foram igualmente localizadas por PONTES na doutrina
tedesca, inclusive com adesão à última delas do respeitado KONRAD HELLWIG
(System, 310 e s.; Anspruch und Klagrecht, 167): Comentários
e t. cit. à nota 21, p. 195‑7.
[25]
WILHELM KISCH, Beitrage zur
Urteilslehre, p. 133 e 185, apud
PONTES, Comentários e t. cit., p.
196.
[26]
Cf. BARBOSA MOREIRA, Comentários ao
Código de Processo Civil,
vol. V, p. 113 (5a ed., 1985).
[27]
COUTURE, Fundamentos do Direito
Processual Civil, p. 349‑50. A proposta tem a simpatia algo
vacilante de OLIVEIRA E CRUZ, obra cit., p. 308‑9, e aparentemente
também a de NELSON CARNEIRO, A nova ação
de alimentos, p. 128‑9.
[28]
Cf. BARBI, "Da preclusão no processo civil", in
Revista Forense, n° 153, p. 63. Contra, ADA PELLEGRINI, anotação n°
6 à p. 68 do citado Eficácia e autoridade...
de LIEBMAN; MACHADO GUIMARÃES, "Preclusão, coisa julgada e efeito
preclusivo", Estudos de Direito
Processual Civil, p. 9 e s.
[29]
V. g.,
JOSÉ DA SILVA PACHECO, Direito Processual Civil, 2° vol., p. 206, n° 1.035; SÉRGIO
GILBERTO PORTO, Doutrina e pratica dos
alimentos, p. 93 e s.; YUSSEF
CAHALI, Dos alimentos, p. 539 (com
o argumento adicional de tratar‑se de "divida de valor");
em certa medida, o próprio LIEBMAN, ao refutar CARNELUTTI, (retro, n° 7
e nota 19). Se outros e suficientes objeções não se opusessem, o erro de
vincular‑se a plenitude da coisa julgada secundum
eventum litis bastaria a invalidar a tese (cf. SERGIO COSTA, Manuale
di Diritto Processuale Civile, p. 217). 0 erro repercute na jurisprudência:
4ª C. Cív. do TJSP, em 02.10.69, in Rev.
dos Trib., n° 414, p. 187; C. Reun. do TJMG, em 23.01.75, in Rev.
de Dir. Civ., nº 6, p. 251; 3a C. Cív. do TJSP, em 21.06.77, in
Jurisprudência Brasileira,
n° 31, p. 301. Alguns desses acórdãos, algo confusos, admitiam ação
rescisória mas negavam a presença de coisa julgada, ou a viam atenuada.
[30]
Como anteriormente exposto no texto, é perfeitamente possível ação de
modificação tendente a converter o alimentante em alimentando e vice‑versa.
Basta que se invoque, a par do principio da reciprocidade, a ocorrência de
alteração particularmente significativa de fortuna de um ou de outro
deles, ou de ambos.
[31]
Sobre a cláusula rebus sic
stantibus implícita na sentença, exemplificativamente, cf. LIEBMAN, Eficácia
e autoridade... cit., p. 25; JAMES GOLDSCHMIDT, Derecho
Procesal Civil, p. 390;
BATISTA MARTINS, Comentários e
vol. cit., p. 355 e s.; CASTRO MENDES, Limites
objectivos... cit., p. 25; ALBERTO DOS REIS, Código
de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 173; AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 3° vol., p. 51 (3ª
ed., 1979); idem, Comentários ao Código
de Processo Civil, vol. IV, p. 454 (5ª ed., 1989); HUMBERTO THEODORO
JR., Processo de Conhecimento,
vol. 2, p. 692; FREDERICO MARQUES, Instituições
de Direito Processual Civil, vol. 4º, p. 350 (3ª ed., 1969); ERNANE
FIDÉLIS, Manual de Direito Processual
Civil, vol. 2, p. 212. Também, mas extraindo conseqüências
inadequadas, SERGIO GILBERTO PORTO, Doutrina
e Prática dos Alimentos, p. 94, e YUSSEF SAID CAHALI, Dos
Alimentos, p. 539.
[32]
Cf. a clássica lição de MATTEO PESCATORE, Sposizione compendiosa della
procedura civile e criminale, p. 163‑75, ditada originalmente com
vistas à competência e à conexão de causas, mas valiosíssima para os
fins aqui cogitados. O texto do mestre italiano, raro entre nós no
original, acha‑se traduzido no artigo “Conexão e ‘tríplice
identidade’”, de MONIZ DE ARAGÃO, in
AJURIS, nº 23, p. 77 e s. (iniciado à p. 72).
[33]
CASTRO MENDES, Limites objectivos...
cit., p. 25‑ó.
[34]
Essa outra forma de dizer, tão inadequada quanto a outra, é proposta
por FREDERICO MARQUES, Instituições
e vol. cit., p. 351. A imutabilidade da sentença perdura, embora ocorra um
corte temporal na sua eficácia. (Cf. BARBOSA MOREIRA, "Ainda e sempre
a coisa julgada", in Direito
Processual Civil (Ensaios e Pareceres), p. 144, nº 8.
[35]
Retro, nota 32.
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