A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS:

 ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI Nº 9.514/97*

 

 

SUMÁRIO

 

1. A Lei nº 9.514/97: linhas gerais.   2. A ideologia do novo sistema.   3. A alienação fiduciária de imóveis.   4. A resolução da propriedade fiduciária.   5. A consolidação do domínio do imóvel.   6. O leilão do imóvel.   7. A consolidação da posse.   8. Outras disposições de cunho processual.   9. As restrições genéricas ao instituto da alienação fiduciária.   10. O procedimento extrajudicial sob o ângulo da constitucionalidade.   11. O procedimento extrajudicial e o Código de Defesa do Consumidor.   12. A natureza contratual do mecanismo de consolidação e a questão das benfeitorias.   13. A "reintegração" liminar.   14. Reações do devedor à consolidação: ação declaratória.   15. Reação do devedor à consolidação: ação consignatória.   16. Reação do devedor ao pedido de reintegração.

 

 

 

1. A Lei nº 9.514/97: linhas gerais. A Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, introduziu inovações de grande porte na sistemática de financiamento para aquisição de bens imóveis e de captação de investimentos para essa finalidade. Sem criar institutos jurídicos propriamente novos, serve-se de vários deles, preexistentes no sistema normativo e conhecidos da doutrina,  para, modificando-os e recombinando-os, estabelecer toda uma disciplina do tema, que, em seu resultado final, é absolutamente nova no direito nacional, inclusive, como adiante se há de ver, no pertinente à orientação finalística, por assim dizer política.

A nova lei revela uma preocupação especial com a atratividade dos investimentos na área imobiliária e com a operacionalização de uma dinâmica de circulação de créditos fácil e expedita. Regula, com esse objetivo, uma atividade até então bem conhecida no âmbito do crédito rural, a chamada securitização. Esta é tratada como atividade econômica típica, a ser desenvolvido por empresas provadas voltadas com exclusividade a esse ramo de negócio. A meta procurada é a de facilitar o desenvolvimento de um mercado secundário de valores imobiliários e, principalmente, tranqüilizar os potenciais investidores quando à segurança do fluxo de retorno.

 

Ainda com vistas a esse favorecimento da formação e melhoria do mercado secundário de valores ligados ao setor imobiliário, foi instituído um título especial, nominativo mas eminentemente circulável, para representar parcelas dos créditos dessa natureza. Denominados Certificados de Recebíveis Imobiliários - CRI - esses papéis são emitidos e colocados no mercado financeiro pelas securitizadoras, com lastro nos créditos a elas cedidos, supondo-se que assim facilitem a participação de investidores, mesmo de pequeno porte, no sistema. Claramente, os artífices da Lei esperam que se repita, com relação ao comércio e financiamento de imóveis, o fenômeno de massificação verificado com o Crédito Direto ao Consumidor, nas duas pontas do sistema: a do consumidor e a do investidor.

 

A inovação maior, entretanto, vai por conta da instituição da alienação fiduciária em garantia dos bens imóveis. Para ela, foi criada uma disciplina própria, calcada naquela pertinente à conhecida alienação fiduciária de bens móveis, mas dela afastando-se em alguns pontos. Trata-se da tônica mais forte do novo sistema: não por acaso, o ponto aparece destacado na epígrafe da lei, segundo a qual o diploma normativo "dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências". Esse é, de resto, o ponto sobre o qual concentraremos o foco do presente estudo, certo que mais diretamente se envolve com a temática geral do evento a que se destina o trabalho e reclama atenção na perspectiva do consumidor de imóveis e de crédito imobiliário.

 

De um lado, a importância da inovação está em que a alienação fiduciária, entre nós intensamente praticada com pertinência a bens móveis nas últimas décadas, representa uma realidade absolutamente nova no mundo dos negócios imobiliários, introduzindo dado inédito no elenco tradicional das garantias que lhe são próprias. Tanto não bastasse, a Lei deu a esse regime de propriedade imobiliária resolúvel um tratamento marcadamente diverso daquele dispensado à alienação fiduciária até então conhecida e utilizada, sobretudo no atinente ao modo de consolidação daquela propriedade na hipótese de inadimplência.  

 

2. A ideologia do novo sistema. Fundamentalmente, o que inspirou a elaboração da nova Lei foi a preocupação de subordinar o comércio de imóveis e o fluxo de capitais nele envolvido às diretivas e critérios do mercado. Imagina-se que, aí como em toda parte, o poder de auto-regulação e de disciplina espontânea do mercado terá o condão de assegurar soluções benéficas ao desenvolvimento dos negócios e garantirá vantagens a todos os envolvidos. Conhecida como é essa premissa e a experiência que de sua aplicação temos, a nova sistemática é, sem dúvida, mais um fruto dileto do neoliberalismo econômico em moda. O ponto central de atenção, que, em matéria de aquisição de imóveis, esteve sempre no comprador-financiado, dado o manifesto interesse social envolvido, desloca-se para a lucratividade do comércio imobiliário, a segurança do investidor do ramo e os atrativos que a correspondente atividade econômica pode oferecer. O foco polarizador da atenção do legislador migrou do social para o estritamente econômico, visto, de resto, preferencialmente pelo ângulo do lucro.[1]

 

Com efeito, todo o chamado Sistema Financeiro da Habitação, desde quando foi instituído, esteve sempre atento prioritariamente ao objetivo de facilitar  a aquisição de imóveis destinados à moradia, notadamente pela clientela pertencente aos estratos economicamente inferiores da população, que nenhuma possibilidade têm de chegar a esse desiderato sem alguma forma de apoio creditício. Também se contemplou sempre, em um segundo momento e em sintonia com aquela meta principal, o estímulo à construção civil, atividade de grande interesse social em si mesma, dada a incomparável capacidade de absorção de mão-de-obra não-qualificada desse setor.

 

Mesmo antes da instituição do SFH, a política habitacional dos governos  (mediante atuação da Caixa Econômica Federal e dos velhos Institutos de Aposentadoria e Pensões, principalmente) sempre esteve pautada pelo social. Agora, invertem-se as prioridades: a preocupação já não é a de assegurar ou pelo menos favorecer a aquisição de moradia a quem dela carece, mas a de melhorar a lucratividade e as garantias das empresas envolvidos com a construção e com o comércio de imóveis. Sintomaticamente, por outro lado, valoriza-se sobremaneira o setor terciário da economia, que não cria nem agrega valor, limitando-se a um atividade parasitária de manipulação de valores e papéis. A tendência aparece claramente acentuada na lei com a institucionalização da atividade securitizadora, acrescendo intermediações e, inevitavelmente, novos custos. Imitando-se uma vez mais as economias desenvolvidas, sem haver percorrido o caminho do desenvolvimento sequer no setor primário, confirma-se o vezo de tentar alcançar resultados sem construir os meios.

 

A preocupação dominante do legislador, agora, é a de garantir o investidor e facilitar o chamado fluxo de retorno do capital investido. Em momento algum transparece qualquer inquietação quanto aos problemas e dificuldades que o sistema poderá criar para o financiado. Assim é que se autoriza a cessão do crédito sem a ciência dele (art. 35), institui-se a tomada e alienação do bem pelo credor por via extrajudicial (arts. 26 e 27), impõe-se ao juiz a concessão liminar da "reintegração na posse" do fiduciante (art. 30), libera-se a estipulação (naturalmente, ao gosto do credor, mediante contrato de adesão) de critérios e condições de reajuste (art. 36), suprimem-se a indenização por benfeitorias e o correspondente direito de retenção (art. 27, § 4º) e assim por diante.

 

Em favor da Lei, tem-se argumentado que o sistema ora instituído passaria a conviver, sem substituí-lo, com o outro, o conhecido Sistema Financeiro de Habitação. Assim, os dois mecanismos funcionariam paralelamente: um, voltado para as necessidades sociais; outro, destinado a atender à demanda das camadas da população aptas a suportar custos ordinários de mercado na aquisição da casa própria, contemplando, de resto, não apenas imóveis residenciais, mas também outros, com destinação a uso comercial ou profissional.[2] Mesmo sem referir a crescente e notória proletarização da classe média nacional, que depõe contra o argumento, é bem de ver que a existência de dois sistemas paralelos, se tal fosse o caso, tenderia forçosamente a concentrar os investimentos no que ofereça maior lucratividade e melhores garantias para o investidor. Por outras palavras: as próprias leis do mercado, tão prestigiadas pelas concepções econômicas que informam a ideologia do novo instituto, encarregar-se-iam de debilitar e matar à míngua de recursos o sistema orientado preferencialmente para o social: todos os capitais potencialmente passíveis de captação pelo mercado imobiliário haveriam de migrar para o outro. Bem por isso, chegou-se a afirmar que, uma vez posto em plena operação o novo sistema, é certo que a garantia hipotecária estará "com os dias contados".[3]

 

 

3. A alienação fiduciária de imóveis. A concepção básica da alienação fiduciária em garantia enquanto instituto jurídico, agora aplicável aos bens imóveis, não desgarra daquela anteriormente adotada para as coisas móveis na Lei nº 4.728/65, art. 66, com a redação modificada pelo Dec.-Lei nº 911/69, naturalmente com as adaptações necessárias a certas peculiaridades dos imóveis, notadamente no atinente aos registros públicos. Entretanto, as cruciais diferenças vão aparecer, sobretudo, nos mecanismos de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade resolúvel, matéria a cujo respeito o novo texto legal adotou soluções e formas absolutamente diversas daquelas prescritas para as situações homólogas tratadas na aludida legislação precedente.

 

Segundo o regime legal instituído, o devedor (dito fiduciante) transmite ao credor (denominado fiduciário) a propriedade do imóvel, temporária e condicionalmente, enquanto perdurar o débito. Como a finalidade do negócio jurídico é de garantia apenas, trata-se, como nos casos anteriormente conhecidos de alienação fiduciária, de propriedade resolúvel, isso significando que, extinto o débito, o domínio ipso facto retorna, em sua plenitude, ao dono anterior. A definição legal é a seguinte:

 

Art. 22.  A alienação fiduciária regulada nesta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa móvel.

 

Da propriedade, nada remanesce com o transmitente, salvo a expectativa de sua recuperação futura. Não há fracionamento do domínio em dois segmentos com titularidade distinta: a técnica seguida não é a do trust do  direito anglo-americano, a envolver esse desdobramento em propriedade legal e propriedade substancial.[4] O que se fraciona, isto sim, como ocorre em muitos negócios jurídicos de garantia de corte mais tradicional, é a posse: o devedor fiduciante retém a direta, inclusive a fruição do bem, ao passo que a indireta passa ao credor fiduciário. É o que claramente estabelece o art. 23, parágrafo único:

 

Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

 

Importa relevar, entretanto, que esse efeito, justamente por se tratar de imóvel, relativamente ao qual todo direito real só pode adquirir existência mediante registro no repertório fundiário, dependerá sempre dessa formalidade imprescindível.[5] A Lei é explícita, no mesmo artigo cujo parágrafo trata do fracionamento da posse:

 

Art. 23.  Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

 

Em complementação, o art. 40 adita uma alínea (de número 35) ao inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos (nº 6.015/73), para incluir o contrato de alienação fiduciária de imóvel entre os títulos registráveis no ofício imobiliário.

 

O conteúdo do contrato acha-se rigidamente determinado pelo art. 24 da comentada Lei. Assim, devem constar o valor da dívida; o prazo e as condições do pagamento; a taxa de juros e a especificação de outros encargos incidentes; a cláusula de constituição da propriedade resolúvel, com perfeita identificação do imóvel, inclusive quanto ao título e modo de sua aquisição; a estipulação do livre uso, pelo fiduciante adimplente, da coisa alienada, por sua conta e risco; a estimativa do valor do imóvel para efeito de eventual leilão, assim como a indicação dos critérios de revisão desse valor. Um último inciso do artigo, o VII, exige "a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27" -- norma assaz intrigante, pois o artigo ao qual ela remete regula exaustiva e imperativamente ditos procedimentos, relativos à consolidação do domínio, ao leilão do bem e à destinação de seu produto, sem deixar margem alguma de dispositividade aos contratantes.[6]

 

 

4. A resolução da propriedade fiduciária. A normal e plena execução espontânea do contrato, obviamente, ocorre quando integralmente pago pelo fiduciante o valor mutuado com os acréscimos legais e convencionais. Segundo o disposto na Lei (art. 25 e seus parágrafos), a quitação do débito garantido enseja a automática resolução do domínio do credor fiduciário, mediante cancelamento do correspondente assento no ofício imobiliário do qual conste o registro respectivo. Para esse efeito, cabe ao fiduciante apresentar ao registrador o termo de quitação fornecido pelo credor. Esse termo deve ser entregue pelo fiduciário ao fiduciante no prazo de trinta dias a contar da  extinção do débito, sob pena da imposição àquele de multa de meio por cento sobre o valor do contrato por mês ou fração.

 

A multa é instituída em favor do devedor prejudicado ex vi legis, incidindo independentemente de apuração de culpa e de qualquer notificação ou interpelação, uma vez esgotado o prazo. Não está prevista hipótese alguma de relevação da sanção pecuniária, sequer a de força maior. A correspondente cobrança pode ser feita por qualquer das vias apropriadas; se judicial, parece indicado o procedimento monitório instituído pelos arts. 1.102-a e seguintes do Código de Processo Civil, desde que munido o fiduciante de documentos aptos a demonstrar sua liberação, tais como os recibos de pagamentos que haja feito e o próprio instrumento contratual. Com efeito, segundo entendimento hoje predominante, está definitivamente afastado o conceito de "título monitório" (ou "título injuntivo", como a ele se referiam setores da doutrina italiana): basta a prova documental, sem se exigir que esteja concentrada em um só instrumento, ou que tenha configuração capaz de identificá-lo como "título".[7]

 

De outra banda, é bem de ver que o pagamento da multa não substitui a outorga da quitação; cumpre somente função penal, tendente a motivar o credor ao cumprimento de sua obrigação de quitar. Daí que não é de excluir-se a propositura, pelo ex-devedor, de ação do tipo cominatório, para compelir o fiduciário à entrega do termo de quitação -- inclusive sob cominação de multa judicial. Quando ocorra essa hipótese, a taxação legal do valor da multa já não impedirá seu arbitramento, pelo juiz, em montante ou percentual diverso daquele posto na lei, pois ao juízo cabe aquilatar da suficiência ou não da pena pecuniária para alcançar o objetivo de compelir ao adimplemento. A multa tem, aí, índole processual, com a natureza das astreintes, voltada para o cumprimento de obrigação de fazer e sujeita ao arbítrio judicial. A coerção patrimonial é técnica executória, destinada a garantir a efetividade do processo, motivo suficiente para que não se lhe oponham limitações, seja quanto ao valor unitário, seja quanto à continuidade e cumulatividade da incidência.[8]

 

Não parece, entretanto, que a norma legal seja suficiente para tranqüilizar o devedor quanto ao tema. A experiência conhecida da alienação fiduciária de bens móveis, das promessas de venda e das vendas com reserva de domínio está continuamente a demonstrar que a mais freqüente fonte de disputas e litígios entre os contratantes situa-se precisamente nos cálculos do saldo devedor, que as instituições financeiras e assemelhadas invariavelmente procuram engrossar com acréscimos nebulosos, cláusulas dúbias e interpretações capciosas, ao passo que o devedor não cessa de buscar brechas e pontos débeis dos quais possa extrair alguma vantagem para reduzir o montante devido. Não é difícil prever que, também com relação ao novo mecanismo de garantia, uma vez mais, as divergências levadas a Juízo tenham esse mesmo pano-de-fundo como tema predominante. Essa ocorrência impediria a pacífica aplicação da norma, cujo pressuposto é a clareza quanto à verificação do pagamento bom e suficiente.

 

 

5. A consolidação do domínio do imóvel. Análise particularmente cuidadosa merece a sistemática adotada para a assim chamada "consolidação da propriedade" em mãos do credor fiduciário, na hipótese de incorrer o devedor em inadimplência ou mora quanto à reposição da quantia mutuada.

 

Dispõe o art. 26 que "vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário". Para tornar efetiva essa consolidação, foi instituído um procedimento cartorário, que transcorre perante o Ofício do Registro de Imóveis, sem qualquer espécie de atividade jurisdicional.

 

Cabe ao credor, uma vez verificado o inadimplemento ou atraso no pagamento, e decorrido o "prazo de carência" que tenha sido definido no contrato, fazer notificar (ou intimar, como está no texto legal) o devedor, por intermédio do serviço registral, para que se ponha em dia com os pagamentos no prazo de quinze dias. Essa purgação da mora deve compreender a prestação vencida (ou as prestações vencidas) e as que se vencerem no prazo concedido, até o efetivo pagamento, além dos acessórios, tais como juros, eventuais penalidades pecuniárias, outros encargos contratuais ou legais, inclusive tributos, possíveis contribuições condominiais e as despesas do próprio procedimento notificatório. Desde logo se observa que há dois prazos consecutivos a serem observados: um, contratual, de carência, durante o qual, embora já esteja em atraso, o devedor não pode ainda ser intimado, nem mesmo se pode deflagrar o procedimento para sua intimação; outro, de purgação da mora, concedido ao devedor a contar da notificação. O primeiro deles tem a sua duração estipulada contratualmente, no mesmo instrumento em que se convencionou a alienação fiduciária, sem qualquer limitação a priori quanto ao mínimo e ao máximo (§ 2º do artigo citado); o segundo é prazo legal, de quinze dias, a cujo respeito nenhuma margem de dispositividade foi deixada às partes (§ 1º).

 

A intimação é pessoal e deve fazer-se ao próprio fiduciante ou, quando seja caso (pessoa jurídica, incapaz, etc.), ao seu representante legal. Prevista foi, outrossim, a que se faz na pessoa de procurador "regularmente constituído", entendendo-se por essa expressão o mandatário munido de poderes específicos para recebê-la. Como aí se trata de constituição em mora, ato jurídico prejudicial ao interesse do mandante, não basta a procuração genérica, com os poderes ordinários ad negotia e ad judicia: o mandatário tem de estar expressamente autorizado a receber a intimação de que cuida o citado § 1º. 

 

Tendo em conta que, em regra, os ofícios de registros de títulos e documentos estão melhor estruturados para a realização de intimações, mais freqüentes no âmbito deles do que no do registro de imóveis, a lei autorizou a transferência de sua realização a tais serviços, sempre mediante solicitação do registro imobiliário; permitiu, outrossim, sua efetivação por via postal, com aviso de recebimento.

 

Acha-se igualmente prevista a intimação por edital, para o caso de achar-se o intimando em lugar desconhecido, depois de devidamente certificada essa circunstância pelo oficial do registro imobiliário. Em redação um tanto dúbia, determina o § 4º que essa publicação se faça em jornal de grande circulação local "ou noutro de comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária". Ora, determinada a publicação em jornal de grande circulação local, já está dito que não precisa ser da mesma comarca, e a questão do "fácil acesso" à comarca onde se edita o jornal é irrelevante: interessa saber se o periódico tem circulação diária significativa no lugar de que se trata, em cuja circunscrição está registrado o contrato, não o lugar onde é editado o jornal. Outra fonte provável de dúvidas e divergências está na expressão "publicado por três dias": resulta difícil entender se esse é um prazo para ter-se como consumada a intimação, a partir da publicação, ou se esta mesma deve ser repetida em três edições diferentes. Esta última parece ser a interpretação que melhor se casa ao texto literal do parágrafo, além de ser a que proporciona melhor probabilidade de chegar a publicação ao conhecimento real do destinatário.

 

A purgação da mora se faz mediante pagamento em mãos do oficial do registro, que, no prazo de três dias, deve transferir ao credor o valor recebido, com desconto das despesas efetuadas. A conseqüência jurídica da purga é a de fazer convalescer o contrato de alienação fiduciária em sua plenitude. Não há limitação legal ao número de oportunidades para novas purgações: o procedimento pode repetir-se ao longo da vigência do contrato tantas vezes quantas se verifiquem os seus pressupostos.

 

Decorridos os quinze dias da intimação sem a purga da mora e certificada a ocorrência pelo oficial, completa-se a consolidação da propriedade em nome do fiduciário, devendo o servidor registrá-la na correspondente matrícula após comprovar o adquirente o pagamento do imposto de transmissão devido.[9]

 

 

         6. O leilão do imóvel. A conversão em dinheiro do valor do crédito se faz mediante oferta pública do imóvel, de iniciativa do credor. O primeiro leilão deve ser promovido por este no prazo de trinta dias a contar do registro da consolidação do domínio. Não o diz a lei explicitamente, mas tem-se de entender que o ato deve ser realizado por leiloeiro público autorizado.

 

Como ficou visto, o imóvel dado em alienação fiduciária em garantia tem um valor certo, fixado convencionalmente pelos contratantes e corrigido segundo os critérios também estipulados no contrato: trata-se de cláusula obrigatória, arrolada entre as do art. 24 (inciso VI). Esse é o valor mínimo pelo qual pode ser arrematado o bem no primeiro leilão. Daí que não se faz cabível qualquer espécie de avaliação do imóvel para fins de leilão: já fora feita pelas partes, necessariamente, a estimativa consensual desse valor.

 

À falta de lanço que iguale ou supere esse montante, deverá ser promovido um segundo leilão, no qual o valor da oferta mínima admissível será aquele do saldo ainda devido pelo mutuário, "nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais" (art. 27, § 3º, inc. I), acrescido das despesas, assim considerados os encargos e custas da intimação e aquelas necessárias à realização do próprio leilão, como anúncios e comissão do leiloeiro (inc. II do mesmo parágrafo). Esse mesmo dispositivo legal deixa claro que o mínimo admitido como lanço deve contemplar também prêmios de seguro, encargos legais, inclusive tributos, e, sendo caso, contribuições condominiais. Cabe observar que esse valor será, em regra, inferior ao fixado para o primeiro leilão, mas não é de excluir-se a priori a eventualidade de ocorrer o oposto, particularmente nos casos em que tenha sido paga pequena parcela do financiamento, as despesas e encargos avultem e a estimativa contratual seja modesta.

 

Consumada a alienação em leilão (primeiro ou segundo, é indiferente) e verificado excesso de valor recebido na comparação com a soma da dívida, despesas e encargos, a ser embolsada pelo fiduciário, este entregará a quantia sobejante ao devedor, no prazo de cinco dias contados da venda. Segundo explicitamente disposto no texto normativo (§ 4º do art. 27), dessa entrega decorre recíproca e plena quitação. Por força de ficção legal, tem-se por incluído na quantia entregue o valor das benfeitorias porventura feitas pelo devedor, afastado expressamente o direito de retenção com fundamento nelas. O dispositivo legal não faz distinção alguma quanto à espécie das benfeitorias, nem quanto ao valor delas e sua relação com o valor do próprio imóvel ou o da quantia em dinheiro assim apurada.

 

Quando não seja alcançado, no segundo leilão, o piso estabelecido no citado § 2º (soma do saldo devedor, encargos e despesas), extingue-se a dívida e exonera-se o devedor do saldo, devendo o credor dar-lhe quitação mediante termo próprio. Nada diz a lei sobre o destino a ser dado, em tal hipótese, ao imóvel. Como este já se incorporou, a título de domínio pleno, ao patrimônio do credor fiduciário e, contrario sensu, o mencionado § 2º proíbe a venda em leilão por lanço menor do que aquela soma, tem-se de entender que o imóvel permanecerá na propriedade do credor, ficando livre ele, desde então, para aliená-lo a quem melhor entender e pelo preço que lhe convier. A solução parece um tanto extravagante, mas é a única que se compatibiliza com os textos de regência.

 

 

7. A consolidação da posse. Também ao tema da tomada da posse do imóvel pelo fiduciário, uma vez plenificado seu domínio, a Lei deu tratamento especial, subtraindo-o às regras gerais de processo. Há importantes aspectos a serem examinados, no particular. Ainda sem colocá-los sob o crivo da crítica, inclusive pelo prisma da constitucionalidade - tarefa a que adiante nos voltaremos -, importa identificá-los exatamente como aparecem na dicção legal.

 

 Como ficou visto, a propriedade, que até então era resolúvel, consolida-se no patrimônio do fiduciário desde o momento em que decai o devedor inadimplente da faculdade de purgar a mora. Contudo, a posse direta, fática, pode ter continuado com o devedor. Para esse caso, a lei assegura ao credor, seu sucessor ou cessionário uma providência a que denomina "reintegração na posse do imóvel", que deve ser liminarmente concedida, mas com a outorga de um prazo de sessenta dias para a desocupação espontânea pelo mutuário. Para obtê-la, basta ao fiduciante (ou quem lhe haja sucedido ou substituído na correspondente posição jurídica) comprovar a consolidação da propriedade (art. 30). 

 

É manifesta a inadequação de linguagem em que incide o texto legal. Não pode haver "reintegração" em uma posse que o fiduciário não tem e nunca teve. Com efeito, e como já ficou registrado no presente estudo, a evolução dominial e possessória é, nos termos da própria Lei nº 9.514, a seguinte: o fiduciante, inicialmente titular da propriedade e da posse em sua plenitude, transfere ao fiduciário, em garantia e em forma resolúvel, o domínio do imóvel; transmite-lhe, outrossim, com o domínio, a posse indireta do bem, retendo a direta; com a consolidação do domínio na pessoa do credor, desaparece o ius possidendi, de que se mantivera titular o financiado, com pertinência à posse direta, mas continua a exercê-la, de fato, até que desocupe o imóvel ou dele seja desalojado. Ora, a posse que o novo dono (o credor ou seu sucessor, sub-rogado ou cessionário) busca é a direta, que ele nunca teve, e não a indireta, que já era dele desde a contratação da alienação fiduciária, como atributo da propriedade. Para obter a posse indireta, não necessita ele de providência judicial ou de outra ordem, eis que já a detém; as medidas que se fazem cabíveis objetivam a atribuição ao novo dono da posse direta, a fim de recompor a unidade da posse anteriormente fracionada por efeito do contrato. O caso é, pois, de imissão na posse, não de reintegração nela: por haver-se tornado titular do ius possidendi pleno, o novo proprietário, agora na titularidade igualmente plena do domínio, cuida de juntar à posse mediata, que já tem, a imediata, que ele nunca teve porque permanecera com o dono anterior.

 

O antecedente legislativo em que, obviamente, a Lei instituidora do SFI se inspirou para construir a esdrúxula figura da execução de mão própria, complementada pela imissão na posse, foi o Dec.-lei nº 70, de 21.11.96 (art. 37, § 2º, no pertinente a esta última providência), mas nesse modelo a denominação da medida judicial está correta. Possivelmente terá parecido ao legislador de 1997, em manifesto equívoco, que o intercorrente desaparecimento da "ação de imissão de posse" do velho estatuto processual de 1939, como procedimento especial, implicaria sua substituição pela ação reintegratória.[10]

 

Nada está disposto na lei quanto ao procedimento a ser adotado em Juízo. Não há cogitar da adoção do rito da ação reintegratória, porque dela não é caso, como ficou visto, e também porque os requisitos e a configuração da liminar possessória são diversos daqueles fixados na lei ora comentada para o caso. Trata-se de uma missio in possessionem sob falso nome e com a peculiaridade referida quanto à liminar: esta só se condiciona à prova da consolidação e não se executa imediatamente. Sabido que o sistema processual vigente não institui rito especial para a ação de imissão, parece impor-se o procedimento ordinário como único cabível, mas com as modificações resultantes do artigo quanto à liminar e sua execução. As oportunidades para resposta, produção de provas e outras atuações das partes, assim como aquelas previstas para o saneamento do processo e eventual antecipação de julgamento são aquelas regidas pela disciplina do rito ordinário, em nada afetado, após a concessão da liminar, pelas peculiaridades desta.           

 

 

8. Outras disposições de cunho processual. O texto instituidor do Sistema Financeiro Imobiliário, por seu art. 34, explicitou que, relativamente aos litígios decorrentes de sua aplicação, podem os contratantes estipular cláusula compromissória. Não precisaria havê-lo feito, por óbvia a aplicabilidade da Lei nº 9.307, de 24.09.96. Sirva lembrar, a esse propósito, que a cláusula compromissória, no regime legal vigente, equipara-se em poder vinculante ao próprio contrato de compromisso, no sentido de que o juízo arbitral pode ser instituído com base apenas nela, sem a intercorrência daquele contrato específico - ao contrário do que se passava antes do advento da Lei da Arbitragem.[11]  Também se faz oportuno lembrar que, nos contratos de adesão - cuja predominância é previsível no âmbito do SFI, como é corrente no mundo das finanças -, será apenas relativa (limitada ao policitante) a eficácia vinculativa da cláusula, certo que continua sendo abusiva, inoponível ao oblato, a convenção de arbitragem firmada em tais condições.[12]

 

Outrossim, a Lei 9.514 fez remissão ao Dec.-Lei nº 70, de 21.11.96, arts. 29 a 41, para estabelecer que se apliquem aos financiamentos imobiliários nela tratados esses dispositivos. Trata-se do texto que instituiu um ominoso procedimento de execução hipotecária extrajudicial, claramente tomado como modelo pelos arts. 26 e 27 da nova Lei, que, de resto, lhe deram fisionomia ainda mais draconiana. Como quer que seja, não será o regime do Dec.-Lei 70, arts. 29 e seguintes, aplicável aos casos de alienação fiduciária de imóveis, visto que aí não há hipoteca e o procedimento para a consolidação do domínio do fiduciante foi exaustivamente regulado, e de modo semelhante mas não idêntico, na lex nova.

 

 

9. As restrições genéricas ao instituto da alienação fiduciária. Desde a introdução da alienação fiduciária em garantia no sistema jurídico nacional, ainda limitada aos bens móveis infungíveis,[13] setores importantes da doutrina e da jurisprudência sempre o encararam com reserva e desconfiança. O artificialismo da chamada translação de domínio em garantia é manifesto, deixando claramente transparecer que se tratou apenas de assegurar aos mercadores de dinheiro  uma redução dos riscos da inadimplência. Por trás da laboriosa e pouco convincente construção teórica do instituto, transparece a busca de realização do sonho dourado do capitalismo mais exacerbado e irresponsável: o investimento sem risco, o lucro sem a eventualidade da perda. Pelo menos desde 1980, detectamos a fragilidade da construção, principalmente com respeito à "equiparação legal" do fiduciante ao depositário, e a denunciamos assim:

 

O neomercantilismo vigente, elevando à quase sacralidade os interesses do comércio, e mui especialmente os do comércio de dinheiro, não se conforma com a aparente inferioridade das garantias com que se pode forrar à inadimplência. E sonha com a adoção de mecanismos legais tão poderosos, em termos de coação psicológica, como os permitidos para forçar o depositário à restituição. (...)

 

Objeto de preocupações maiores deve ser a tendência à equiparação de bens dados em garantia. Está nesse caso a volumosa legislação sobre penhor rural e industrial. Mas sobremaneira significativa, pelo largo uso que hoje se faz do instituto e pela extensão do segmento populacional atingido, é a responsabilização ao modo de depositário do fiduciante, nos contratos de abertura de crédito com garantia de alienação fiduciária. É manifesto o artifício a que recorre o legislador, com vistas a possibilitar essa estranha equiparação. Há na "alienação" fiduciária uma forma de transmissão de domínio que toca os limites da pura ficção.[14] 

 

E, páginas adiante, após análise da situação extremamente vulnerável em que se colocava o fiduciante, acrescentávamos:

 

Tudo isso, aliás, confirma o artificialismo, a que cedo aludimos, da "equiparação" do fiduciante ao depositário. Tem-se, em verdade, uma ação de cobrança sob ameaça de prisão, e sua consagração legislativa é atestado deveras eloqüente do poderio que entre nós alcançaram as empresas que comerciam com dinheiro. Os males que daí advieram e ainda advirão, como conseqüência do abuso do poder econômico, possivelmente forçarão, em futuro próximo, o reexame da constitucionalidade das disposições legais em foco.[15]

 

Essa preocupação foi a mesma de muitos juristas e repercutiu intensamente na jurisprudência. Um dos mais lúcidos magistrados que honraram a toga no Brasil, o Ministro Adhemar Maciel, recentemente jubilado, proferiu voto lapidar no Superior Tribunal de Justiça, profligando a ficção de domínio que se criou e apodando-a de aberratio legis. Demonstrou o grande juiz que o credor fiduciário não se torna verdadeiramente proprietário, o que se pode verificar, inclusive, pelo fato de o eventual desaparecimento do bem não conduzir à aplicação da parêmia milenar res perit domino. Mostrou, mais, que a figura jurídica envolvida talvez melhor se caracterizasse como penhor sine traditio rei do que na qualidade artificiosamente elaborada de transmissão da propriedade. Ainda segundo o vigoroso voto, o que o Dec.-Lei 911/69 fizera fora o simples acréscimo de uma garantia esdrúxula, sob ameaça de prisão civil, faltando o legislador a seu compromisso com a ordem jurídica estabelecida e contrariando toda a nossa tradição jurídica, que deita raízes profundas em todo sistema jurídico ocidental.[16]

 

No momento em que se amplia o campo de incidência do instituto, convém que se tenham presente essas objeções, reservas e suspeitas, que o acompanham desde sua introdução no sistema jurídico nacional. Se cabe dizer, em louvor dessa ampliação, que ela alargará ao mercado imobiliário as vantagens de uma circulação mais dinâmica de capitais, como a verificada mercê da expansão do crédito ao consumidor ligada à adoção da garantia fiduciária sobre móveis, não é demais que se lembre a inquietação e os perigos que podem decorrer dessa expansão para uma área extremamente sensível do ponto de vista social, qual seja a da habitação.

 

 

10. O procedimento extrajudicial sob o ângulo da constitucionalidade. Como, de passagem, já ficou registrado, o legislador foi buscar em um dos mais lamentáveis diplomas normativos do entulho autoritário herdado aos governos militares - o Dec.-Lei nº 70/66, que instituiu procedimento de execução hipotecária extrajudicial - o modelo do caminho a ser seguido para a efetivação da garantia, vale dizer, para a consolidação do domínio até então resolúvel. E, não satisfeito com essa escolha infeliz da fonte de inspiração, piorou consideravelmente o modelo, afastando não apenas a atuação judicial (que o Dec.-Lei 70 já excluía), mas até mesmo a intermediação de um terceiro desinteressado, que na aludida fonte era o chamado agente fiduciário. Na solução agora introduzida, nem isso ocorre: trata-se de verdadeira execução de mão própria, desencadeada e conduzida pelo próprio credor e conducente à extinção não apenas do direito expectativo do devedor à reaquisição do domínio, mas também do ius possidendi que o contrato lhe assegurava.

 

Cabe também observar que, na comparação com outros antecedentes legislativos, como a cobrança por via semelhante do Decreto nº 58,  repetido no particular pela Lei nº 6.766/79 (quanto a imóveis loteados prometidos à venda) e da Lei nº 4.591/64 (quanto a imóveis em construção), o prazo de carência, a decorrer antes de tornar-se possível a intimação, é de natureza legal, ao passo que as disposições ora introduzidas atribuem sua fixação aos contratantes - vale dizer, na prática, ao credor, dada a inelutável predominância do contrato de adesão. Mais: nos casos comparados, trata-se de relação meramente obrigacional, de relação de débito e crédito, ao passo que a nova legislação envolve a transferência do domínio. 

 

É sumamente discutível a constitucionalidade da solução legal em foco. Se até mesmo a do citado Decreto-Lei, menos drástica do que esta, continua a ser duramente questionada, sem embargo da reiterada manifestação do Pretório Excelso no sentido afirmativo,[17] a exacerbação da unilateralidade e da desgarantia acrescem motivos para que se duvide da conformidade do procedimento agora instituído ao disposto no art. 5º da Constituição Federal, incs. XXXV, XXXVII, LIII, LIV e LV.  Com efeito, a entrega da iniciativa e condução do procedimento ao próprio credor, sem a intermediação ao menos moderadora de terceiro desinteressado, representa uma inaceitável regressão à autotutela. Escancara-se aí a opção preferencial pela proteção ao capital, ao custo do sacrifício do princípio da indeclinabilidade da jurisdição. O próprio credor faz notificar o devedor e, sem outra intermediação que não a do Oficial do Registro, limitado ao papel de portador da intimação, alcança a plenificação do seu domínio sobre o imóvel, sem que ao devedor se abra qualquer possibilidade que não seja a de pagar aquilo que o credor afirma devido.

 

O raciocínio segundo o qual o fiduciante - como o devedor hipotecário, no caso de aplicação do Dec.-Lei 70 - sempre terá ainda a oportunidade de questionar a regularidade do procedimento quando do ajuizamento da ação de imissão na posse (agora incorretamente crismada de reintegratória),  tem por si o constituir um dos esteios a que se escora a jurisprudência do Supremo, no tema da execução hipotecária extrajudicial. Mas, ainda nessas coordenadas, que não são exatamente as da nova situação tratada na Lei 9.514, o argumento, venia permissa, prova demais. A partir dele, a rigor, se levado às últimas conseqüências, em qualquer espécie de litígio seria lícito a um dos envolvidos - o mais poderoso - impor ao outro a solução que lhe parecesse correta, certo que sempre restaria a possibilidade ao prejudicado de questionar a legalidade desse procedimento quando se tratasse de tornar efetiva, no plano dos fatos, dita solução. Ou, pelo menos, estaria o legislador autorizado a construir procedimentos, para quaisquer categorias de relações jurídicas que lhe parecessem comportar essa providência, que afastassem o controle judicial a priori da legalidade das condutas. Vale dizer, estaria o legislador liberado das peias que lhe impõem os comandos constitucionais da universalidade da jurisdição, do contraditório necessário e do devido processo. Ora, a efetividade do processo e dos direitos é meta por todos almejada, mas certamente não a esse custo.       

 

O mesmo se pode dizer, de resto, quanto à sempre presente possibilidade de obter o prejudicado a tutela jurisdicional em face de eventuais abusos, através dos remédios processuais adequados. Essa possibilidade não afasta o fato central de que uma situação potencialmente litigiosa (v. g., para ficar na hipótese mais freqüente, divergência entre os contratantes sobre o quantum do saldo devedor) será, ainda que talvez temporariamente, solucionada mediante autotutela, impondo um dos interessados ao outro, pelos seus próprios meios, o que ele sustenta ser o seu direito. Claro, a todo tempo e em qualquer situação, aquele que tem por ofendido ou ameaçado um interesse seu juridicamente protegido, pode invocar a tutela jurisdicional; mas nem por isso se compreende que o próprio legislador estimule e prestigie a atuação arbitrária, precisamente da parte mais favorecida. O mesmo sistema jurídico que, in genere, opõe a reforçada sanção penal ao "exercício arbitrário das próprias razões" não deveria praticar a incoerência de autorizá-lo com respeito a determinado contrato específico. De resto, o "direito à jurisdição", assegurado a todos, é indisponível e inalienável, integrando o núcleo central das garantias mínimas da cidadania.[18]

 

Essas considerações impõem a conveniência de, no mínimo, abrir-se o debate da constitucionalidade do procedimento de realização da garantia adotado pela Lei 9.514.

 

 

11. O procedimento de consolidação e o Código de Defesa do Consumidor.  À luz do direito legislado nacional, já não cabe sequer discutir se os contratos de crédito, bancário ou não, podem constituir relações de consumo colocadas sob o especial regime da Lei nº 8.078/90. Enquadrando-se o mutuante na definição legal de fornecedor profissional (no caso, de serviço) e o tomador do mútuo no perfil do consumidor largamente traçado pela mesma Lei, a relação contratual é de consumo. Desde longa data, acha-se solidamente afirmada, inclusive, a idéia de que essa abrangência se alarga aos contratos de crédito imobiliário.

 

Graças à definição ampla de seu campo de aplicação, a doutrina majoritária atual considera que o CDC é aplicável tanto aos contratos de crédito direto ao consumidor (crédito que permite ou se destina a aquisição de produtos e serviços) quanto ao crédito denominado na Europa de crédito imobiliário (destinado a aquisição de bens imóveis). Alguns doutrinadores, com o apoio da Confederação Brasileira de Bancos, logo após a entrada em vigor do CDC, tentaram sem sucesso defender a redução do campo de aplicação do Código protetivo do consumidor. O CDC deixaria de ser aplicado aos contratos envolvendo crédito e aos contratos bancários e financeiros em geral, face a uma interpretação restritiva do art. 3º do CDC. Essas tentativas não alcançaram a repercussão prática por elas esperada e foram fortemente recusadas pela maioria da doutrina e após pela jurisprudência. A mais recente jurisprudência brasileira considera os princípios e algumas normas do CDC aplicáveis mesmo a contratos de leasing e contratos envolvendo crédito a pequenos comerciantes e profissionais liberais, em uma evolução exatamente no sentido inverso do defendido pela Confederação de Bancos.[19]

 

Na verdade, ainda que se argumente não se enquadrar o tomador de empréstimo no conceito corrente, ordinário, de consumidor, e não ser o dinheiro, objeto do mútuo, destinado ao consumo no sentido de destruição pelo uso,[20] a definição legal particularizada pelo § 2º do art. 3º do CDC, não deixa lugar algum à dúvida: os serviços a que alude seu art. 2º incluem as atividades "de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária." De resto, a pá-de-cal sobre a ensaiada polêmica é lançada pelo art. 52, que volta a referir-se a crédito e financiamentos como objeto possível de consumo.[21]

 

Posta essa premissa, emerge uma questão de vital importância no âmbito da presente disquisição: os contratos de mútuo garantido por alienação fiduciária, celebrados no âmbito do SFI, submetem-se à vedação invalidante do art. 53 do CDC?  Por outras palavras, aplica-se à alienação fiduciária de imóveis a proibição de se cominar a perda total das parcelas já pagas?

 

Temos que a resposta só pode ser positiva. Conquanto posterior ao CDC, a Lei nº 9.514/97 não o derrogou nesse ou em qualquer aspecto. Na medida em que haja, porventura, disposto por forma diversa daquela estabelecida no microssistema de proteção ao consumidor, a lex nova há de aplicar-se, sim, mas só às situações que não se achem sob a égide deste, a saber, os contratos que não sejam contratos de consumo, ocorrentes, e. g., nas relações interempresariais.

 

Tenha-se presente, antes de tudo, que o CDC, mesmo não sendo formalmente uma lei complementar (até porque o próprio ADCT preferiu dar-lhe o nome de Código), desempenha a correspondente função, detalhando e assegurando a aplicação de normas constitucionais inarredáveis. Suas regras, como define o art. 1º, são "de ordem pública e interesse social, nos termos do art. 5º, inc. XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal, e art. 48 de suas Disposições Transitórias." O que substancialmente caracteriza a Lei Complementar, posta pela doutrina em posição intercalar abaixo da Emenda Constitucional e acima da Lei Ordinária, é a sua finalidade de, sem modificar o texto constitucional, intermediar a sua aplicação quando ele mesmo não se baste a esse fim.[22] Ainda sob a mesma perspectiva, cabe anotar que, caso se pretendesse aplicar as regras da lei nova a típicos contratos de consumo, haver-se-ia de esbarrar na manifesta inconstitucionalidade delas, quando assim interpretadas, na medida em que colidiriam, com as normas da Constituição Federal, art. 5º, XXXII, e art. 170, V.

 

De outra banda, importa considerar, igualmente, que a Lei 9.514 não criou, propriamente, um instituto jurídico novo. Ampliando e recombinando institutos que o ordenamento já conhecia, não se pode dizer que haja introduzido nele algum mecanismo que não se achasse contemplado no Código de Defesa do Consumidor. A alienação fiduciária em garantia - qualquer que viesse a ser sua evolução posterior à edição daquele Código - estava nele regulada quanto aos aspectos respeitantes às relações de consumo, e assim continua. O alargamento do campo de incidência desse direito real de garantia, dado pertencente mais exatamente ao campo econômico do que ao jurídico, não afeta o que a respeito dele dispunha a legislação anterior. Em sede doutrinária, aliás, foi corretamente assinalado, antes do advento da Lei 9.514, que o instituto já consagrado e perfeitamente delimitado da garantia fiduciária comportava extensão aos imóveis, com vistas, inclusive, aos financiamentos para aquisição da moradia própria.[23] Isso significa que a inclusão posterior dos bens imóveis no elenco dos que se podem dar em alienação fiduciária não representou inovação substancial significativa o suficiente para afetar a vigência das disposições legais que regulavam in genere esse direito real de garantia. De resto, prevista estava igualmente no CDC, e particularmente no seu art. 53, a relação de consumo com objeto na aquisição de bens imóveis.

 

  A conclusão que se impõe é no sentido de que a aplicação literal dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514 não se poderá fazer nos casos em que a operação imobiliária objeto do financiamento caracterize uma relação de consumo. Em tal hipótese, ou essas disposições devem ser interpretadas de modo a não conduzirem à perda total das prestações já pagas (e sim apenas daquelas cujo valor corresponda ao dano decorrente da ruptura do contrato e efetivamente apurado em concreto), ou as relações de consumo permanecem fora do âmbito de incidência das aludidas regras jurídicas.

 

Poder-se-ia, quiçá, objetar que essa solução levaria ao locupletamento do fiduciante. Sem razão, entretanto, pois o argumento envolve uma inversão de perspectiva. O financiado, isto sim, haveria de sofrer injusto prejuízo toda vez que, tendo comprado determinado bem e pago parte do preço, viesse a ser privado assim da propriedade do bem como dos valores que por ele pagou. Tal só se pode admitir quando o mecanismo de compensação previsto no § 2º do art. 53 resulte em igualdade ou em saldo favorável ao credor. Como agudamente observa uma emérita especialista, o CDC não proíbe a contratação da cláusula penal em si, mas veda, isto sim, as estipulações, inclusive as de cunho penal, que desequilibrem a economia contratual em detrimento do consumidor, como aquela que acarreta para ele onerosidade excessiva ("desvantagem exagerada", na dicção do art. 51, inc. IV).[24]

 

A interpretação integrada das normas legais confrontadas, assim, obriga o fiduciário que houver promovido o leilão a repor ao fiduciante os valores arrecadados, na medida em que excederem o proveito efetivamente auferido por aquele com a fruição do bem e a multa acaso instituída. Essa obrigação lhe há de pesar independentemente de haver a alienação ocorrido em primeiro ou segundo leilão e do montante arrecadado.

 

 

12. A natureza contratual do mecanismo de consolidação e a questão das benfeitorias.  Como en passant já ficou referido, a Lei 9.514 encerra uma singularidade, para não dizer uma contradição: impõe como cláusula obrigatória do pacto de alienação fiduciária (art. 24, VII) a que dispõe sobre os procedimentos extrajudiciais de excussão da garantia, embora estes se achem, por sua vez, minuciosa e rigidamente definidos, em todos os seus aspectos, pela mesma Lei (art. 27).

 

Como explicar-se o absurdo de obrigar à contratação em termos exaustiva e previamente incluídos no próprio texto legal? A mens legislatoris está bem clara: pensou-se, um tanto ingenuamente, que a inclusão dessa cláusula no instrumento contratual teria o condão de prevenir e obstar possível alegação futura de ilegalidade ou inconstitucionalidade, eis que o devedor, ao menos formalmente, teria prestado ex ante a adesão de sua vontade à adoção desse mecanismo legal.  Mas a mens legis resultou precisamente no contrário: como uma das mais elementares regras de hermenêutica afasta que se presumam dizeres inúteis no texto normativo, a forma de realização da garantia, conquanto prescrita em lei, tem de ser vista como uma estipulação contratual. O que a sujeita por inteiro, também por isso, ao crivo das restrições dos artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor, que vêm de ser analisadas.

Cabe ainda acrescentar, a esse respeito, que a talvez mais escandalosa das afrontas ao aludido Código é a contida no § 4º do citado art. 27. Segundo essa estipulação - a ser obrigatoriamente "contratada", entre outras, pelo fiduciante - nega-se a este não apenas o direito de retenção por benfeitorias (qualquer que seja sua classificação!), mas também o direito a haver indenização por elas.  Dificilmente se poderia imaginar melhor exemplo de cláusula leonina ou, para ficar na terminologia do CDC, abusiva. Como, em se tratando de contrato de consumo, ela se há de ter por não escrita, ao credor fiduciário que tenha alcançado a consolidação de seu domínio sobre o imóvel pesará, sim, a obrigação de indenizar benfeitorias necessárias e úteis, e ao fiduciante se tem de reconhecer o direito de retenção até que a receba, segundo o direito comum.

Acrescente-se que, mesmo posto de lado esse caráter contratual da pretendida exclusão do direito de retenção e da própria indenização de benfeitorias, a norma do parágrafo sob comento não poderia prevalecer, por contrária a princípio basilar de direito, que proíbe o locupletamento e o enriquecimento sem causa.

 

13. A "reintegração" liminar.  O delírio legislativo não se detém na "contratação" de cláusula com conteúdo obrigatório e predefinido. No art. 30, impõe ao juiz (já que, parece, aí admitiu atuação jurisdicional) o deferimento de uma liminar, dita de reintegração, e que já vimos ser, em verdade, de imissão na posse.

É, pois, ao juiz que agora se pretende impor uma "decisão" de conteúdo predeterminado, o que constitui a negação mesma da atividade jurisdicional. O pressuposto de um semelhante provimento judicial seria, naturalmente, a inadmissibilidade de qualquer defesa ou objeção do demandado. Mas, a ser assim, não haveria lugar para qualquer procedimento em juízo.

Obviamente, o comando legal deve ser entendido em termos. O juiz concederá ou denegará a liminar, segundo o convencimento que formar sobre o direito do autor.[25] Não é de excluir-se, de resto, que a liminar do artigo tenha sido concedida e venha a ser cassada no curso do processo, à vista dos termos da defesa oferecida pelo réu.

 

14. Reação do devedor à consolidação: ação declaratória. Como claramente visto ao ensejo da análise do art. 26, o procedimento extrajudicial aí instituído não oferece qualquer oportunidade de defesa ou resistência por parte do réu. Só se lhe abre a opção entre purgar a mora e deixar fluir em branco o prazo assinado. Entretanto, pode suceder que ele tenha matéria relevante a opor à pretensão do credor. Já se viu a freqüência com que a prática do foro registra a divergência entre os interessados quanto ao cálculo do valor efetivamente devido e vencido. Também outras situações podem apresentar-se, capazes de afastar a pretensão, como, v. g., a inobservância do prazo de carência que haja sido contratualmente estipulado. Não se olvide, outrossim, o que ficou dito quanto à razoável alegação de inconstitucionalidade ou de ilegalidade do procedimento em face de outros diplomas legais, notadamente o CDC.

Como o procedimento em causa transcorre em sede extrajudicial, não há como possa o devedor apresentar qualquer alegação de natureza defensiva, ou objeção ao direito invocado pelo credor. Caso se abalance a sustentar a inconstitucionalidade ou ilegalidade do procedimento - pelas razões que antes apontamos ou por outras - não se lhe oferece outro caminho que não o da ação declaratória negativa, para transferir ao âmbito judicial o debate que de outro modo não se poderia abrir. Parece recomendável, em tal emergência, que o autor da declaratória postule antecipação de tutela, para deter o seguimento da atuação extrajudicial do credor, pois de outro modo a demora na tramitação do processo, por menor que seja, lançará o seu desfecho para além da data em que o fiduciário alcançará o registro da consolidação do seu domínio. Sirva assinalar que a carga declarativa da sentença pretendida não constitui óbice à concessão dessa antecipação: a hesitação da doutrina quanto ao ponto acha-se já ultrapassada, admitindo-se hoje, sem restrições, o adiantamento da eficácia da sentença declaratória e da constitutiva.

 

Importa ter presente que a sentença declarativa, valendo “como simples preceito”, na dicção do antigo Código Nacional de Processo Civil, nem por isso há de ser vista como incapaz de produzir conseqüências concretas, palpáveis, no mundo físico. À parte a clareza jurídica, que é um dado objetivo (embora corresponda, no espírito dos interessados e de terceiros, a um estado subjetivo de certeza, vale dizer, de supressão de dúvidas), a sentença é autorizativa de condutas com ela compatíveis. Os figurantes da relação processual devem adotar comportamento de obediência ao preceito. Diversamente do que se dá com a condenação, que habilita o interessado ao exercício de uma nova atuação em juízo (ação de execução), a mera declaração judicial permite à própria parte vencedora a adoção da conduta correspondente ao direito declarado.[26] Por certo, a declaração em si não pode ser antecipada; a idéia de uma antecipação da certeza jurídica, vale dizer, um “acertamento provisório da relação jurídica” não se compadece com a boa lógica.[27] Contudo, os efeitos práticos que dela emanariam são passíveis de adiantamento, como, v. g., a participação do autor em deliberação social, antes mesmo de ser declarada, como objeto específico da demanda, a sua condição de sócio.[28]

 

Merece lembrada, a propósito, uma precisa e oportuna lição: o que se antecipa não é a eficácia jurídico-formal da sentença, mas os seus efeitos práticos, a sua eficácia social.[29] Os desdobramentos que se desenvolvem no plano dos fatos é que se tomam em conta, não aquela eficácia que “se passa no mundo dos pensamentos”.[30] Contempla-se aí a “regra jurídica como conduta humana”, o “Direito vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se”.[31] E, vista assim, a eficácia de qualquer sentença – inclusive a das declaratórias e constitutivas – é perfeitamente passível de antecipação, porque todas elas produzem repercussões sensíveis no mundo dos fatos.[32]

 

 

15. Reação do devedor à consolidação: ação consignatória. Caso o devedor discorde do saldo devedor calculado pelo credor por ocasião da intimação promovida por este junto ao ofício imobiliário, e por algum motivo não se queira servir de um remédio mais enérgico, pode submeter ao juiz competente (em regra, o da situação do imóvel) o seu próprio cálculo, mediante pedido de consignação em pagamento. Com efeito, esse é o remédio processual adequado, quando o devedor deseja liberar-se da obrigação e o credor está a exigir quantia maior do que a devida. E com maior razão se há de admitir em caso como o cogitado, pois o procedimento extrajudicial não oferece ensejo algum à discussão do quantum debeatur.

 

Sendo esse o caso, não se faz necessária a postulação de tutela antecipada, pela singela razão de que a simples realização do depósito em ação consignatória tem o condão de sustar qualquer efeito da mora. Com efeito, sempre esteve presente no direito nacional a norma segundo a qual, efetuado o depósito, e até que se julgue de sua aptidão para substituir o pagamento, tudo se passa como se a dívida estivesse satisfeita. Na espécie, ocorre uma antecipação natural da eficácia da sentença, decorrente da norma do art. 891, dado que a eficácia é do próprio depósito. A suspensão ex vi legis de qualquer efeito da mora solvendi, portanto, independendo de requerimento algum do interessado e prolongando-se até a eventual declaração de improcedência da demanda (ou tornando-se definitiva na de procedência), afasta a necessidade e, pois, o cabimento dessa postulação. Ausenta-se dela o interesse processual.

 

 

16. Reação do devedor ao pedido de "reintegração". Se o fiduciário já obteve a consolidação do seu domínio e o respectivo registro, estando já a promover a impropriamente denominada "reintegração na posse" do art. 30, estará o fiduciante em posição de réu na correspondente ação. Caber-lhe-á, então, oferecer qualquer das modalidades de resposta permitidas pelo direito processual civil vigente - contestação, exceção e reconvenção.

 

Posta de lado a questão da inadequação do rito, já examinada, e que pode ser levantada em preliminar, a argüição central a ser formulada será, obviamente, a de nulidade do título em que assenta o pedido do autor, a saber, a consolidação registrada no ofício competente. Impugnará o demandado a validade do procedimento de consolidação, pelos mesmos fundamentos que invocaria, na situação antes já analisada, em ação declaratória de nulidade.

 

Dita nulidade pode ser argüída incidentalmente, apenas como argumento defensivo, sem pedido de declaração autoritativa dela, caso em que também a sentença manifestar-se-á sobre o ponto incidenter tantum, valendo a resposta judicial quanto ao ponto apenas como fundamento, como razão de decidir, sem que possa revestir da autoridade de coisa julgada (CPC, art. 469). Por isso mesmo, recomendável é que o réu se utilize da reconvenção ou da ação declaratória incidental, para pedir que o juiz pronuncie, quanto à invalidade do ato antecedente, sentença no mais estrito sentido, traduzindo a vontade concreta da lei quanto ao tema e recobrindo-se da autoridade da res iudicata (CPC, art. 5º).[33]  Assim, a resolução da questão prejudicial da validade do procedimento extrajudicial de consolidação, tanto quanto a matéria do próprio pedido principal do autor, adquire caráter autoritativo.

 

Pode suceder que o demandado se conforme ao desfazimento do negócio, dispondo-se a entregar a coisa, mas alegue crédito contra o autor - particularmente, o crédito por restituição das quantias que haja pago, ou da parte delas que o autor deva repor em razão do disposto no art. 53 do CDC. A cobrança desse valor, líquido ou a ser liquidado, pode igualmente ser encaminhada pela via reconvencional. 

 

Pode dar-se, outrossim, que o réu não se oponha à entrega da coisa, nem ao cálculo feito pelo fiduciário, admitindo o desfazimento do negócio, mas tenha feito nela benfeitorias indenizáveis. De acordo com o que ficou antes exposto, essa matéria enseja defesa do demandado, fundada no direito de retenção. Como não se trata de procedimento executório stricto sensu, essa alegação não precisa ser veiculada pela via dos embargos, podendo constituir matéria da contestação.  

 

  

      (Junho de 2000)


* Conferência proferida no I Simpósio Nacional de Direito Bancário, São Paulo, julho de 2000.

[1] Fenômeno semelhante já se havia verificado em relação à garantia fiduciária representada por bens móveis, com a edição do Dec.-Lei nº 911/69. Detectou-o com precisão Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, "Procedimento e ideologia no Direito Brasileiro atual", na Revista AJURIS, nº 33, p. 79.

[2] Essa duplicidade de mecanismos legais, cada qual voltado a um segmento definido de compradores, foi apontada como significativo avanço por Melhim Namem Chalhub, "Alienação fiduciária de bens imóveis", in Revista de Direito Imobiliário, nº 45, janeiro de 1999. 

[3] A opinião, aliás, é de um fervoroso defensor da nova Lei: Décio Antônio Erpen, "Alienação fiduciária imobiliária e hipoteca", no Informativo Semanal COAD nº 08/99, p. 120.

[4] Sobre isso, a fonte mais divulgada entre nós é o livro de Philip H. Pettit Equity and the law of trusts. A toda evidência, essa concepção não é compatível com os princípios que governam o Direito Privado nos sistema jurídicos de ascendência românica, ou romano-germânica.

[5] Como alhures sustentamos, a posse considerada em si mesma é mero fato, e não direito (não cabendo, pois, discutir se real ou pessoal): Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, tomo III, p. 335 e s. Entretanto, o jus possidendi, o direito à posse, pode ser pessoal (locação, por exemplo) ou real (v. g., alienação fiduciária).

[6] Tem-se a clara impressão de um freudiano lapsus calami: o legislador parece haver desconfiado da solidez do terreno que pisava, isto é, dos limites constitucionais em que atuava, transferindo às partes o encargo de assentar cláusula obrigatória, de conteúdo predeterminado, como que a admitir ex ante a insuficiência (ou ineficácia) da norma legal... Adiante, no texto, será necessário retornar ao tema.

[7] Cf. Eduardo Talamini, Tutela monitória, p. 62 e s.(São Paulo, 1997), com notícia da controvérsia que o tema ensejou na Itália..

[8] Nesse sentido, STJ, 4ª T., REsp 13.416-0-RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, RSTJ 4(37)/428. Na doutrina, no mesmo rumo, Araken de Assis, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VI, p. 422 (Rio de Janeiro, Forense, 1999).

[9] O texto legal, que foi detalhista ao ponto de acrescentar novo caso de registro - o do contrato de alienação fiduciária - à enumeração do art. 167 da Lei de Registros Públicos, olvidou-se, entretanto, de acrescer à casuística o da consolidação do domínio, que é um novo registro.

[10] Sobre a permanência da pretensão de direito material à imissão e da correspondente ação no quadro legal vigente, embora sem procedimento especial, cf. nossos Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, tomo III, p. 27, nº 15 (7ª ed., Rio, 1995); Ovídio Baptista da Silva, "A eficácia executiva da ação de imissão de posse", na Revista de Processo, nº 2, p. 102; Gildo dos Santos, "Imissão na posse. Aspectos processuais", no volume Posse e propriedade, org. por Yussef Said Cahali, p. 443 (São Paulo, 1987); Herondes João de Andrade, "Ação de imissão na posse", na Revista Brasileira de Direito Processual, nº 22, p. 51; Galeno Lacerda, O novo direito processual civil e os feitos pendentes, p. 42 (Rio, 1974) -- entre outros.

[11] Por todos, cf. Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e processo, p. 29, nº 12 (São Paulo, 1998).

[12] Como demonstrou Carmona, obra cit., p. 86-7, o art. 51, inc. VII, do Código de Defesa do Consumidor permanece em plena vigência, o que torna irrelevante a péssima redação do § 2º do art. 4º da Lei 9.307, resultante de uma infeliz subemenda introduzida na Câmara dos Deputados. Substancialmente no mesmo sentido, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, p. 1386, nota 3 (3ª ed., São Paulo, 1997).

[13] Sobre essa limitação, cf. nosso artigo "Alienação fiduciária de coisa fungível: um grave equívoco", na Revista dos Tribunais, nº 617, p. 16.

[14] Comentários, vol. e tomo cit., p. 151-2, nº 137.

[15] Ib., p. 171, nº 151.

[16] O voto, que prevaleceu por maioria, foi proferido no julgamento do RHC 4288-5-RJ, pela 6ª T. do STJ, em 13.03.95, ac. publ. no DJU de 19.06.95. Depois de alguma vacilação, com aparente inclinação pela tese desse voto, acabou a Corte por submeter-se ao poderoso influxo da jurisprudência do Supremo, em sentido oposto.

[17] V. g., ainda recentemente, RE 223075, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, em 23.06.98, ac. un.: "EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. DECRETO-LEI Nº 70/66. CONSTITUCIONALIDADE. Compatibilidade do aludido diploma legal com a Carta da República, posto que, além de prever uma fase de controle judicial, conquanto a posteriori, da venda do imóvel objeto da garantia pelo agente fiduciário, não impede que eventual ilegalidade perpetrada no curso do procedimento seja reprimida, de logo, pelos meios processuais adequados." (In DJU de 06.11.98, p. 22). No mesmo sentido, RE 240311/RS, 1ª T., DJU de 29.10.99, p. 23; RE 148872/RS, 1ª T., DJU  de 12.05.2000, p. 27. Sem embargo da constância da orientação do Supremo, a freqüência com que a matéria volta ali a debate indica a atualidade da controvérsia nas instâncias ordinárias.

[18] Vale conferir, sobre o tema, a lição de Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, Constituição de 1988 e processo, p. 12 (São Paulo, 1989).

[19] Cláudia de Lima Marques, "Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção do consumidor, na Revista Direito do Consumidor, nº 18, p. 55 (artigo iniciado à p. 53). A ilustre especialista expõe essa idéia também no seu livro Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 141-7 (2ª ed.). No mesmo sentido, Nelson Nery Jr., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 302-3 (Rio, 1991); Maria Antonieta Zanardo Donato, Proteção ao consumidor - conceito e extensão, p. 131 ( São Paulo, 1993); Antonio Janyr Dall'Agnoll Jr., "Aplicação do CDC nas atividades bancárias", na Revista de Direito Bancário, ano I, nº 1, p. 450 e s. (iniciado à p. 437) - entre muitos outros.

[20] Esses os principais argumentos opostos pelos defensores da tese restritiva, notadamente Arnold Wald, "o direito do consumidor e suas repercussões em relação às instituições financeiras", na Revista dos Tribunais, nº 666, p. 7 e s. 

[21] Particularmente sobre esse ponto, Eduardo Arruda Alvim et alii, Código do Consumidor comentado, p. 257 e s. (2ª ed., São Paulo, 1995).

[22] Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, t. III, p. 136 e 149-51 (São Paulo, 1967).

[23] Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, "Alienação fiduciária em garantia e aquisição de casa própria", na Revista dos Tribunais, nº 612, p. 11 e s.

[24] Cf. Cláudia Marques, "Os contratos de crédito..." cit., p. 64.

[25] Nesse sentido tem-se orientado a jurisprudência mesmo em matéria de despejo, quando autorizado em caráter liminar - mesmo sendo essa uma situação em que melhor se justifica o permissivo legal: o autor busca a retomada do que é seu, em situações nas quais o término da relação contratual está bem claro e mediante caução.

[26] “...sucessivamente à procedência de uma ação declaratória, há o direito de haver comportamento em conformidade com o que foi decidido. Esse comportamento está ao abrigo, precisamente, da eficácia da sentença declaratória.” (Arruda Alvim, Tratado de direito processual civil, v. I, p. 429, arrematando lúcido raciocínio desenvolvido desde a p. 419).

[27] Parece não havê-lo levado em conta Theodoro Jr., “Tutela antecipada”, na Revista de direito processual civil, nº 4, jan.-abr. 1997, p. 45.

[28] Certo, João Batista Lopes, “Tutela antecipada...” cit., p. 211: “Possível será, em tese, antecipar alguns efeitos práticos decorrentes da tutela declaratória, mas não a própria declaração.

[29] Cf. Teori Albino Zavascki, Antecipação da tutela, p. 48; id., “Eficácia social da prestação jurisdicional”, na Revista da informação legislativa, nº 122, p. 291.

[30] Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. 1, p. 16-17.

[31] Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 112-113 (7ª ed., São Paulo, 1980).

[32] Assim conclui, com segurança, Zavascki, Antecipação... cit., p. 84-85. No mesmo sentido, com  igual ou diversa fundamentação, Bedaque, Tutela cautelar... cit., p. 342-345; Batista Lopes, “Tutela antecipada...” cit., p. 211; Marinoni,  “A tutela antecipatória nas ações declaratória e constitutiva”, na coletânea citada de Teresa Wambier, p. 277 e s.(iniciado  à p. 267);  Nelson Nery Jr., “Procedimentos e tutela antecipatória” cit., 395-396 (item 2.1.); Teresa Wambier, “Da liberdade do juiz na concessão de liminares”, no citado volume por ela organizado, p. 541 (iniciado à p. 483); Kazuo Watanabe,  “Tutela antecipatória e...” cit., p. 35; Ovídio Baptista, “A ‘antecipação’ da tutela...” cit., p. 131 e s. Os autores, em minoria, que sustentam opinião oposta fazem-no por não distinguirem a antecipação de efeitos da antecipação da própria declaração: assim, Araken de Assis, “Antecipação de tutelacit., p. 22; Mancuso, “Tutela antecipada...” cit., p. 184 (§ 4º).

[33] Sobre essa distinção, cf. A. F. Fabrício, A ação declaratória incidental, passim, especialmente p. 57 e s. (2ª ed., Rio, 1995), e José Carlos Barbosa Moreira, Questões prejudiciais e coisa julgada, passim (Rio, 1967).

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