A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS:
ASPECTOS
PROCESSUAIS DA LEI Nº 9.514/97*
SUMÁRIO
1. A Lei nº 9.514/97: linhas gerais.
2. A ideologia do novo sistema.
3. A alienação fiduciária de imóveis.
4. A resolução da propriedade fiduciária. 5. A consolidação do domínio do imóvel.
6. O leilão do imóvel. 7.
A consolidação da posse. 8.
Outras disposições de cunho processual.
9. As restrições genéricas ao instituto da alienação fiduciária.
10. O procedimento extrajudicial sob o ângulo da constitucionalidade.
11. O procedimento extrajudicial e o Código de Defesa do Consumidor.
12. A natureza contratual do mecanismo de consolidação e a questão das
benfeitorias. 13. A
"reintegração" liminar. 14. Reações
do devedor à consolidação: ação declaratória.
15. Reação do devedor à consolidação: ação consignatória. 16. Reação do devedor ao pedido de reintegração.
1. A Lei nº 9.514/97: linhas gerais. A Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997,
introduziu inovações de grande porte na sistemática de financiamento para
aquisição de bens imóveis e de captação de investimentos para essa
finalidade. Sem criar institutos jurídicos propriamente novos, serve-se de vários
deles, preexistentes no sistema normativo e conhecidos da doutrina,
para, modificando-os e recombinando-os, estabelecer toda uma disciplina
do tema, que, em seu resultado final, é absolutamente nova no direito nacional,
inclusive, como adiante se há de ver, no pertinente à orientação finalística,
por assim dizer política.
A nova lei revela uma preocupação
especial com a atratividade dos investimentos na área imobiliária e com a
operacionalização de uma dinâmica de circulação de créditos fácil e
expedita. Regula, com esse objetivo, uma atividade até então bem conhecida no
âmbito do crédito rural, a chamada securitização.
Esta é tratada como atividade econômica típica, a ser desenvolvido por
empresas provadas voltadas com exclusividade a esse ramo de negócio. A meta
procurada é a de facilitar o desenvolvimento de um mercado secundário de
valores imobiliários e, principalmente, tranqüilizar os potenciais
investidores quando à segurança do fluxo de retorno.
Ainda
com vistas a esse favorecimento da formação e melhoria do mercado secundário
de valores ligados ao setor imobiliário, foi instituído um título especial,
nominativo mas eminentemente circulável, para representar parcelas dos créditos
dessa natureza. Denominados Certificados
de Recebíveis Imobiliários -
CRI -
esses papéis são emitidos e colocados no mercado financeiro pelas
securitizadoras, com lastro nos créditos a elas cedidos, supondo-se que assim
facilitem a participação de investidores, mesmo de pequeno porte, no sistema.
Claramente, os artífices da Lei esperam que se repita, com relação ao comércio
e financiamento de imóveis, o fenômeno de massificação verificado com o Crédito
Direto ao Consumidor, nas duas pontas do sistema: a do consumidor e a do
investidor.
A
inovação maior, entretanto, vai por conta da instituição da alienação
fiduciária em garantia dos bens imóveis. Para ela, foi criada uma disciplina
própria, calcada naquela pertinente à conhecida alienação fiduciária de
bens móveis, mas dela afastando-se em alguns pontos. Trata-se da tônica mais
forte do novo sistema: não por acaso, o ponto aparece destacado na epígrafe da
lei, segundo a qual o diploma normativo "dispõe sobre o Sistema de
Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel
e dá outras providências". Esse é, de resto, o ponto sobre o qual
concentraremos o foco do presente estudo, certo que mais diretamente se envolve
com a temática geral do evento a que se destina o trabalho e reclama atenção
na perspectiva do consumidor de imóveis e de crédito imobiliário.
De
um lado, a importância da inovação está em que a alienação fiduciária,
entre nós intensamente praticada com pertinência a bens móveis nas últimas décadas,
representa uma realidade absolutamente nova no mundo dos negócios imobiliários,
introduzindo dado inédito no elenco tradicional das garantias que lhe são próprias.
Tanto não bastasse, a Lei deu a esse regime de propriedade imobiliária resolúvel
um tratamento marcadamente diverso daquele dispensado à alienação fiduciária
até então conhecida e utilizada, sobretudo no atinente ao modo de consolidação
daquela propriedade na hipótese de inadimplência.
2. A ideologia
do novo sistema. Fundamentalmente,
o que inspirou a elaboração da nova Lei foi a preocupação de subordinar o
comércio de imóveis e o fluxo de capitais nele envolvido às diretivas e critérios
do mercado. Imagina-se que, aí como em toda parte, o poder de auto-regulação
e de disciplina espontânea do mercado terá o condão de assegurar soluções
benéficas ao desenvolvimento dos negócios e garantirá vantagens a todos os
envolvidos. Conhecida como é essa premissa e a experiência que de sua aplicação
temos, a nova sistemática é, sem dúvida, mais um fruto dileto do
neoliberalismo econômico em moda. O ponto central de atenção, que, em matéria
de aquisição de imóveis, esteve sempre no comprador-financiado, dado o
manifesto interesse social envolvido, desloca-se para a lucratividade do comércio
imobiliário, a segurança do investidor do ramo e os atrativos que a
correspondente atividade econômica pode oferecer. O foco polarizador da atenção
do legislador migrou do social para o estritamente econômico, visto, de resto,
preferencialmente pelo ângulo do lucro.[1]
Com
efeito, todo o chamado Sistema Financeiro da Habitação, desde quando foi
instituído, esteve sempre atento prioritariamente ao objetivo de facilitar a aquisição de imóveis destinados à moradia, notadamente
pela clientela pertencente aos estratos economicamente inferiores da população,
que nenhuma possibilidade têm de chegar a esse desiderato sem alguma forma de
apoio creditício. Também se contemplou sempre, em um segundo momento e em
sintonia com aquela meta principal, o estímulo à construção civil, atividade
de grande interesse social em si mesma, dada a incomparável capacidade de absorção
de mão-de-obra não-qualificada desse setor.
Mesmo
antes da instituição do SFH, a política habitacional dos governos
(mediante atuação da Caixa Econômica Federal e dos velhos Institutos
de Aposentadoria e Pensões, principalmente) sempre esteve pautada pelo social.
Agora, invertem-se as prioridades: a preocupação já não é a de assegurar ou
pelo menos favorecer a aquisição de moradia a quem dela carece, mas a de
melhorar a lucratividade e as garantias das empresas envolvidos com a construção
e com o comércio de imóveis. Sintomaticamente, por outro lado, valoriza-se
sobremaneira o setor terciário da economia, que não cria nem agrega valor,
limitando-se a um atividade parasitária de manipulação de valores e papéis.
A tendência aparece claramente acentuada na lei com a institucionalização da
atividade securitizadora, acrescendo intermediações e, inevitavelmente, novos
custos. Imitando-se uma vez mais as economias desenvolvidas, sem haver
percorrido o caminho do desenvolvimento sequer no setor primário, confirma-se o
vezo de tentar alcançar resultados sem construir os meios.
A
preocupação dominante do legislador, agora, é a de garantir o investidor e
facilitar o chamado fluxo de retorno do capital investido. Em momento algum
transparece qualquer inquietação quanto aos problemas e dificuldades que o
sistema poderá criar para o financiado. Assim é que se autoriza a cessão do
crédito sem a ciência dele (art. 35), institui-se a tomada e alienação do
bem pelo credor por via extrajudicial (arts. 26 e 27), impõe-se ao juiz a
concessão liminar da "reintegração na posse" do fiduciante (art.
30), libera-se a estipulação (naturalmente, ao gosto do credor, mediante
contrato de adesão) de critérios e condições de reajuste (art. 36),
suprimem-se a indenização por benfeitorias e o correspondente direito de retenção
(art. 27, § 4º) e assim por diante.
Em
favor da Lei, tem-se argumentado que o sistema ora instituído passaria a
conviver, sem substituí-lo, com o outro, o conhecido Sistema Financeiro de
Habitação. Assim, os dois mecanismos funcionariam paralelamente: um, voltado
para as necessidades sociais; outro, destinado a atender à demanda das camadas
da população aptas a suportar custos ordinários de mercado na aquisição da
casa própria, contemplando, de resto, não apenas imóveis residenciais, mas
também outros, com destinação a uso comercial ou profissional.[2]
Mesmo sem referir a crescente e notória proletarização
da classe média nacional, que depõe contra o argumento, é bem de ver que
a existência de dois sistemas paralelos, se tal fosse o caso, tenderia forçosamente
a concentrar os investimentos no que ofereça maior lucratividade e melhores
garantias para o investidor. Por outras palavras: as próprias leis do mercado,
tão prestigiadas pelas concepções econômicas que informam a ideologia do
novo instituto, encarregar-se-iam de debilitar e matar à míngua de recursos o
sistema orientado preferencialmente para o social: todos os capitais
potencialmente passíveis de captação pelo mercado imobiliário haveriam de
migrar para o outro. Bem por isso, chegou-se a afirmar que, uma vez posto em
plena operação o novo sistema, é certo que a garantia hipotecária estará
"com os dias contados".[3]
3. A alienação fiduciária de imóveis. A
concepção básica da alienação fiduciária em garantia enquanto instituto
jurídico, agora aplicável aos bens imóveis, não desgarra daquela
anteriormente adotada para as coisas móveis na Lei nº 4.728/65, art. 66, com a
redação modificada pelo Dec.-Lei nº 911/69, naturalmente com as adaptações
necessárias a certas peculiaridades dos imóveis, notadamente no atinente aos
registros públicos. Entretanto, as cruciais diferenças vão aparecer,
sobretudo, nos mecanismos de realização da garantia, mediante consolidação
da propriedade resolúvel, matéria a cujo respeito o novo texto legal adotou
soluções e formas absolutamente diversas daquelas prescritas para as situações
homólogas tratadas na aludida legislação precedente.
Segundo
o regime legal instituído, o devedor (dito fiduciante) transmite ao credor
(denominado fiduciário) a propriedade do imóvel, temporária e
condicionalmente, enquanto perdurar o débito. Como a finalidade do negócio jurídico
é de garantia apenas, trata-se, como nos casos anteriormente conhecidos de
alienação fiduciária, de propriedade resolúvel, isso significando que,
extinto o débito, o domínio ipso facto retorna,
em sua plenitude, ao dono anterior. A definição legal é a seguinte:
Art.
22. A alienação fiduciária
regulada nesta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante,
com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário,
da propriedade resolúvel de coisa móvel.
Da
propriedade, nada remanesce com o transmitente, salvo a expectativa de sua
recuperação futura. Não há fracionamento do domínio em dois segmentos com
titularidade distinta: a técnica seguida não é a do trust
do direito anglo-americano, a
envolver esse desdobramento em propriedade
legal e propriedade substancial.[4]
O que se fraciona, isto sim, como ocorre em muitos negócios jurídicos de
garantia de corte mais tradicional, é a posse:
o devedor fiduciante retém a direta, inclusive a fruição do bem, ao passo que
a indireta passa ao credor fiduciário. É o que claramente estabelece o art.
23, parágrafo único:
Com
a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse,
tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da
coisa imóvel.
Importa
relevar, entretanto, que esse efeito, justamente por se tratar de imóvel,
relativamente ao qual todo direito real só pode adquirir existência mediante
registro no repertório fundiário, dependerá sempre dessa formalidade
imprescindível.[5]
A Lei é explícita, no mesmo artigo cujo parágrafo trata do fracionamento da
posse:
Art.
23. Constitui-se a propriedade
fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis,
do contrato que lhe serve de título.
Em
complementação, o art. 40 adita uma alínea (de número 35) ao inciso I do
art. 167 da Lei de Registros Públicos (nº 6.015/73), para incluir o contrato
de alienação fiduciária de imóvel entre os títulos registráveis no ofício
imobiliário.
O
conteúdo do contrato acha-se rigidamente determinado pelo art. 24 da comentada
Lei. Assim, devem constar o valor da dívida; o prazo e as condições do
pagamento; a taxa de juros e a especificação de outros encargos incidentes; a
cláusula de constituição da propriedade resolúvel, com perfeita identificação
do imóvel, inclusive quanto ao título e modo de sua aquisição; a estipulação
do livre uso, pelo fiduciante adimplente, da coisa alienada, por sua conta e
risco; a estimativa do valor do imóvel para efeito de eventual leilão, assim
como a indicação dos critérios de revisão desse valor. Um último inciso do
artigo, o VII, exige "a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que
trata o art. 27" -- norma assaz intrigante, pois o artigo ao qual ela
remete regula exaustiva e imperativamente ditos procedimentos, relativos à
consolidação do domínio, ao leilão do bem e à destinação de seu produto,
sem deixar margem alguma de dispositividade aos contratantes.[6]
4. A resolução da propriedade fiduciária. A
normal e plena execução espontânea do contrato, obviamente, ocorre quando
integralmente pago pelo fiduciante o valor mutuado com os acréscimos legais e
convencionais. Segundo o disposto na Lei (art. 25 e seus parágrafos), a quitação
do débito garantido enseja a automática resolução do domínio do credor
fiduciário, mediante cancelamento do correspondente assento no ofício imobiliário
do qual conste o registro respectivo. Para esse efeito, cabe ao fiduciante
apresentar ao registrador o termo de quitação fornecido pelo credor. Esse
termo deve ser entregue pelo fiduciário ao fiduciante no prazo de trinta dias a
contar da extinção do débito,
sob pena da imposição àquele de multa de meio por cento sobre o valor do
contrato por mês ou fração.
A
multa é instituída em favor do devedor prejudicado ex
vi legis, incidindo independentemente de apuração de culpa e de qualquer
notificação ou interpelação, uma vez esgotado o prazo. Não está prevista
hipótese alguma de relevação da sanção pecuniária, sequer a de força
maior. A correspondente cobrança pode ser feita por qualquer das vias
apropriadas; se judicial, parece indicado o procedimento monitório instituído
pelos arts. 1.102-a e seguintes do Código de Processo Civil, desde que munido o
fiduciante de documentos aptos a demonstrar sua liberação, tais como os
recibos de pagamentos que haja feito e o próprio instrumento contratual. Com
efeito, segundo entendimento hoje predominante, está definitivamente afastado o
conceito de "título monitório" (ou "título injuntivo",
como a ele se referiam setores da doutrina italiana): basta a prova documental,
sem se exigir que esteja concentrada em um só instrumento, ou que tenha
configuração capaz de identificá-lo como "título".[7]
De
outra banda, é bem de ver que o pagamento da multa não substitui
a outorga da quitação; cumpre somente função penal, tendente a motivar o
credor ao cumprimento de sua obrigação de quitar. Daí que não é de
excluir-se a propositura, pelo ex-devedor, de ação do tipo cominatório, para
compelir o fiduciário à entrega do termo de quitação -- inclusive sob cominação
de multa judicial. Quando ocorra essa
hipótese, a taxação legal do valor da multa já não impedirá seu
arbitramento, pelo juiz, em montante ou percentual diverso daquele posto na lei,
pois ao juízo cabe aquilatar da suficiência ou não da pena pecuniária para
alcançar o objetivo de compelir ao adimplemento. A multa tem, aí, índole
processual, com a natureza das astreintes,
voltada para o cumprimento de obrigação de fazer e sujeita ao arbítrio
judicial. A coerção patrimonial é técnica executória, destinada a garantir
a efetividade do processo, motivo suficiente para que não se lhe oponham limitações,
seja quanto ao valor unitário, seja quanto à continuidade e cumulatividade da
incidência.[8]
Não
parece, entretanto, que a norma legal seja suficiente para tranqüilizar o
devedor quanto ao tema. A experiência conhecida da alienação fiduciária de
bens móveis, das promessas de venda e das vendas com reserva de domínio está
continuamente a demonstrar que a mais freqüente fonte de disputas e litígios
entre os contratantes situa-se precisamente nos cálculos do saldo devedor, que
as instituições financeiras e assemelhadas invariavelmente procuram engrossar
com acréscimos nebulosos, cláusulas dúbias e interpretações capciosas, ao
passo que o devedor não cessa de buscar brechas e pontos débeis dos quais
possa extrair alguma vantagem para reduzir o montante devido. Não é difícil
prever que, também com relação ao novo mecanismo de garantia, uma vez mais,
as divergências levadas a Juízo tenham esse mesmo pano-de-fundo como tema
predominante. Essa ocorrência impediria a pacífica aplicação da norma, cujo
pressuposto é a clareza quanto à verificação do pagamento bom e suficiente.
5. A consolidação do domínio do imóvel. Análise
particularmente cuidadosa merece a sistemática adotada para a assim chamada
"consolidação da propriedade" em mãos do credor fiduciário, na hipótese
de incorrer o devedor em inadimplência ou mora quanto à reposição da quantia
mutuada.
Dispõe
o art. 26 que "vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e
constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a
propriedade do imóvel em nome do fiduciário". Para tornar efetiva essa
consolidação, foi instituído um procedimento cartorário, que transcorre
perante o Ofício do Registro de Imóveis, sem
qualquer espécie de atividade jurisdicional.
Cabe
ao credor, uma vez verificado o inadimplemento ou atraso no pagamento, e
decorrido o "prazo de carência" que tenha sido definido no contrato,
fazer notificar (ou intimar, como está
no texto legal) o devedor, por intermédio do serviço registral, para que se
ponha em dia com os pagamentos no prazo de quinze dias. Essa purgação da mora
deve compreender a prestação vencida (ou as prestações vencidas) e as que se
vencerem no prazo concedido, até o efetivo pagamento, além dos acessórios,
tais como juros, eventuais penalidades pecuniárias, outros encargos contratuais
ou legais, inclusive tributos, possíveis contribuições condominiais e as
despesas do próprio procedimento notificatório. Desde logo se observa que há
dois prazos consecutivos a serem observados: um, contratual, de carência,
durante o qual, embora já esteja em atraso, o devedor não pode ainda ser
intimado, nem mesmo se pode deflagrar o procedimento para sua intimação;
outro, de purgação da mora, concedido ao devedor a contar da notificação. O
primeiro deles tem a sua duração estipulada contratualmente, no mesmo
instrumento em que se convencionou a alienação fiduciária, sem qualquer
limitação a priori quanto ao mínimo e ao máximo (§ 2º do artigo citado); o
segundo é prazo legal, de quinze dias, a cujo respeito nenhuma margem de
dispositividade foi deixada às partes (§ 1º).
A
intimação é pessoal e deve fazer-se ao próprio fiduciante ou, quando seja
caso (pessoa jurídica, incapaz, etc.), ao seu representante legal. Prevista
foi, outrossim, a que se faz na pessoa de procurador "regularmente constituído",
entendendo-se por essa expressão o mandatário munido de poderes específicos
para recebê-la. Como aí se trata de constituição em mora, ato jurídico
prejudicial ao interesse do mandante, não basta a procuração genérica, com
os poderes ordinários ad negotia e ad judicia: o mandatário tem de estar expressamente autorizado a
receber a intimação de que cuida o citado § 1º.
Tendo
em conta que, em regra, os ofícios de registros de títulos e documentos estão
melhor estruturados para a realização de intimações, mais freqüentes no âmbito
deles do que no do registro de imóveis, a lei autorizou a transferência de sua
realização a tais serviços, sempre mediante solicitação do registro imobiliário;
permitiu, outrossim, sua efetivação por via postal, com aviso de recebimento.
Acha-se
igualmente prevista a intimação por edital, para o caso de achar-se o
intimando em lugar desconhecido, depois de devidamente certificada essa circunstância
pelo oficial do registro imobiliário. Em redação um tanto dúbia, determina o
§ 4º que essa publicação se faça em jornal de grande circulação local
"ou noutro de comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária".
Ora, determinada a publicação em jornal de grande circulação local, já
está dito que não precisa ser da mesma comarca, e a questão do "fácil
acesso" à comarca onde se edita o jornal é irrelevante: interessa saber
se o periódico tem circulação diária significativa no lugar de que se trata,
em cuja circunscrição está registrado o contrato, não o lugar onde é
editado o jornal. Outra fonte provável de dúvidas e divergências está na
expressão "publicado por três dias": resulta difícil entender se
esse é um prazo para ter-se como consumada a intimação, a partir da publicação,
ou se esta mesma deve ser repetida em três edições diferentes. Esta última
parece ser a interpretação que melhor se casa ao texto literal do parágrafo,
além de ser a que proporciona melhor probabilidade de chegar a publicação ao
conhecimento real do destinatário.
A
purgação da mora se faz mediante pagamento em mãos do oficial do registro,
que, no prazo de três dias, deve transferir ao credor o valor recebido, com
desconto das despesas efetuadas. A conseqüência jurídica da purga é a de
fazer convalescer o contrato de alienação fiduciária em sua plenitude. Não há
limitação legal ao número de oportunidades para novas purgações: o
procedimento pode repetir-se ao longo da vigência do contrato tantas vezes
quantas se verifiquem os seus pressupostos.
Decorridos
os quinze dias da intimação sem a purga da mora e certificada a ocorrência
pelo oficial, completa-se a consolidação da propriedade em nome do fiduciário,
devendo o servidor registrá-la na correspondente matrícula após comprovar o
adquirente o pagamento do imposto de transmissão devido.[9]
6. O leilão do imóvel. A conversão em dinheiro do valor do crédito se faz mediante oferta pública
do imóvel, de iniciativa do credor. O primeiro leilão deve ser promovido por
este no prazo de trinta dias a contar do registro da consolidação do domínio.
Não o diz a lei explicitamente, mas tem-se de entender que o ato deve ser
realizado por leiloeiro público autorizado.
Como
ficou visto, o imóvel dado em alienação fiduciária em garantia tem um valor
certo, fixado convencionalmente pelos contratantes e corrigido segundo os critérios
também estipulados no contrato: trata-se de cláusula obrigatória, arrolada
entre as do art. 24 (inciso VI). Esse é o valor mínimo pelo qual pode ser
arrematado o bem no primeiro leilão. Daí que não se faz cabível qualquer espécie
de avaliação do imóvel para fins de leilão: já fora feita pelas partes,
necessariamente, a estimativa consensual desse valor.
À
falta de lanço que iguale ou supere esse montante, deverá ser promovido um
segundo leilão, no qual o valor da oferta mínima admissível será aquele do
saldo ainda devido pelo mutuário, "nele incluídos os juros convencionais,
as penalidades e os demais encargos contratuais" (art. 27, § 3º, inc. I),
acrescido das despesas, assim considerados os encargos e custas da intimação e
aquelas necessárias à realização do próprio leilão, como anúncios e
comissão do leiloeiro (inc. II do mesmo parágrafo). Esse mesmo dispositivo
legal deixa claro que o mínimo admitido como lanço deve contemplar também prêmios
de seguro, encargos legais, inclusive tributos, e, sendo caso, contribuições
condominiais. Cabe observar que esse valor será, em regra, inferior ao fixado
para o primeiro leilão, mas não é de excluir-se a
priori a eventualidade de ocorrer o oposto, particularmente nos casos em que
tenha sido paga pequena parcela do financiamento, as despesas e encargos avultem
e a estimativa contratual seja modesta.
Consumada
a alienação em leilão (primeiro ou segundo, é indiferente) e verificado
excesso de valor recebido na comparação com a soma da dívida, despesas e
encargos, a ser embolsada pelo fiduciário, este entregará a quantia sobejante
ao devedor, no prazo de cinco dias contados da venda. Segundo explicitamente
disposto no texto normativo (§ 4º do art. 27), dessa entrega decorre recíproca
e plena quitação. Por força de ficção
legal, tem-se por incluído na quantia entregue o valor das benfeitorias
porventura feitas pelo devedor, afastado expressamente o direito de retenção
com fundamento nelas. O dispositivo legal não faz distinção alguma quanto à
espécie das benfeitorias, nem quanto ao valor delas e sua relação com o valor
do próprio imóvel ou o da quantia em dinheiro assim apurada.
Quando
não seja alcançado, no segundo leilão, o piso estabelecido no citado § 2º
(soma do saldo devedor, encargos e despesas), extingue-se a dívida e exonera-se
o devedor do saldo, devendo o credor dar-lhe quitação mediante termo próprio.
Nada diz a lei sobre o destino a ser dado, em tal hipótese, ao imóvel. Como
este já se incorporou, a título de domínio pleno, ao patrimônio do credor
fiduciário e, contrario sensu, o
mencionado § 2º proíbe a venda em leilão por lanço menor do que aquela
soma, tem-se de entender que o imóvel permanecerá na propriedade do credor,
ficando livre ele, desde então, para aliená-lo a quem melhor entender e pelo
preço que lhe convier. A solução parece um tanto extravagante, mas é a única
que se compatibiliza com os textos de regência.
7. A consolidação da posse. Também ao tema
da tomada da posse do imóvel pelo fiduciário, uma vez plenificado seu domínio,
a Lei deu tratamento especial, subtraindo-o às regras gerais de processo. Há
importantes aspectos a serem examinados, no particular. Ainda sem colocá-los
sob o crivo da crítica, inclusive pelo prisma da constitucionalidade - tarefa a que adiante nos voltaremos -, importa identificá-los exatamente como
aparecem na dicção legal.
Como ficou visto, a propriedade, que até então era resolúvel,
consolida-se no patrimônio do fiduciário desde o momento em que decai o
devedor inadimplente da faculdade de purgar a mora. Contudo, a posse direta, fática,
pode ter continuado com o devedor. Para esse caso, a lei assegura ao credor, seu
sucessor ou cessionário uma providência a que denomina "reintegração na
posse do imóvel", que deve ser liminarmente concedida, mas com a outorga
de um prazo de sessenta dias para a desocupação espontânea pelo mutuário.
Para obtê-la, basta ao fiduciante (ou quem lhe haja sucedido ou substituído na
correspondente posição jurídica) comprovar a consolidação da propriedade
(art. 30).
É
manifesta a inadequação de linguagem em que incide o texto legal. Não pode
haver "reintegração" em uma posse que o fiduciário não tem e nunca
teve. Com efeito, e como já ficou registrado no presente estudo, a evolução
dominial e possessória é, nos termos da própria Lei nº 9.514, a seguinte: o
fiduciante, inicialmente titular da propriedade e da posse em sua plenitude,
transfere ao fiduciário, em garantia e em forma resolúvel, o domínio do imóvel;
transmite-lhe, outrossim, com o domínio, a posse indireta
do bem, retendo a direta; com a
consolidação do domínio na pessoa do credor, desaparece o ius
possidendi, de que se mantivera titular o financiado, com pertinência à
posse direta, mas continua a exercê-la, de fato, até que desocupe o imóvel ou
dele seja desalojado. Ora, a posse que o novo dono (o credor ou seu sucessor,
sub-rogado ou cessionário) busca é a direta,
que ele nunca teve, e não a indireta,
que já era dele desde a contratação da alienação fiduciária, como atributo
da propriedade. Para obter a posse indireta, não necessita ele de providência
judicial ou de outra ordem, eis que já a detém; as medidas que se fazem cabíveis
objetivam a atribuição ao novo dono da posse direta, a fim de recompor a
unidade da posse anteriormente fracionada por efeito do contrato. O caso é,
pois, de imissão na posse, não de
reintegração nela: por haver-se tornado titular do ius
possidendi pleno, o novo proprietário, agora na titularidade igualmente
plena do domínio, cuida de juntar à posse mediata, que já tem, a imediata,
que ele nunca teve porque permanecera com o dono anterior.
O
antecedente legislativo em que, obviamente, a Lei instituidora do SFI se
inspirou para construir a esdrúxula figura da execução de mão própria,
complementada pela imissão na posse, foi o Dec.-lei nº 70, de 21.11.96 (art.
37, § 2º, no pertinente a esta última providência), mas nesse modelo a
denominação da medida judicial está correta. Possivelmente terá parecido ao
legislador de 1997, em manifesto equívoco, que o intercorrente desaparecimento
da "ação de imissão de posse" do velho estatuto processual de 1939,
como procedimento especial, implicaria sua substituição pela ação reintegratória.[10]
Nada
está disposto na lei quanto ao procedimento a ser adotado em Juízo. Não há
cogitar da adoção do rito da ação reintegratória, porque dela não é caso,
como ficou visto, e também porque os requisitos e a configuração da liminar
possessória são diversos daqueles fixados na lei ora comentada para o caso.
Trata-se de uma missio in possessionem sob
falso nome e com a peculiaridade referida quanto à liminar: esta só se
condiciona à prova da consolidação e não se executa imediatamente. Sabido
que o sistema processual vigente não institui rito especial para a ação de
imissão, parece impor-se o procedimento ordinário como único cabível, mas
com as modificações resultantes do artigo quanto à liminar e sua execução.
As oportunidades para resposta, produção de provas e outras atuações das
partes, assim como aquelas previstas para o saneamento do processo e eventual
antecipação de julgamento são aquelas regidas pela disciplina do rito ordinário,
em nada afetado, após a concessão da liminar, pelas peculiaridades desta.
8. Outras disposições de cunho processual. O
texto instituidor do Sistema Financeiro Imobiliário, por seu art. 34,
explicitou que, relativamente aos litígios decorrentes de sua aplicação,
podem os contratantes estipular cláusula compromissória. Não precisaria havê-lo
feito, por óbvia a aplicabilidade da Lei nº 9.307, de 24.09.96. Sirva lembrar,
a esse propósito, que a cláusula compromissória, no regime legal vigente,
equipara-se em poder vinculante ao próprio contrato de compromisso, no sentido
de que o juízo arbitral pode ser instituído com base apenas nela, sem a
intercorrência daquele contrato específico -
ao contrário do que se passava antes do advento da Lei da Arbitragem.[11]
Também se faz oportuno lembrar que, nos contratos de adesão -
cuja predominância é previsível no âmbito do SFI, como é corrente no mundo
das finanças -, será apenas relativa (limitada ao
policitante) a eficácia vinculativa da cláusula, certo que continua sendo abusiva,
inoponível ao oblato, a convenção
de arbitragem firmada em tais condições.[12]
Outrossim,
a Lei 9.514 fez remissão ao Dec.-Lei nº 70, de 21.11.96, arts. 29 a 41, para
estabelecer que se apliquem aos financiamentos imobiliários nela tratados esses
dispositivos. Trata-se do texto que instituiu um ominoso procedimento de execução
hipotecária extrajudicial, claramente tomado como modelo pelos arts. 26 e 27 da
nova Lei, que, de resto, lhe deram fisionomia ainda mais draconiana. Como quer
que seja, não será o regime do Dec.-Lei 70, arts. 29 e seguintes, aplicável
aos casos de alienação fiduciária de imóveis, visto que aí não há
hipoteca e o procedimento para a consolidação do domínio do fiduciante foi
exaustivamente regulado, e de modo semelhante mas não idêntico, na lex
nova.
9. As restrições genéricas ao instituto da
alienação fiduciária. Desde
a introdução da alienação fiduciária em garantia no sistema jurídico
nacional, ainda limitada aos bens móveis infungíveis,[13]
setores importantes da doutrina e da jurisprudência sempre o encararam com
reserva e desconfiança. O artificialismo da chamada translação de domínio em
garantia é manifesto, deixando claramente transparecer que se tratou apenas de
assegurar aos mercadores de dinheiro uma
redução dos riscos da inadimplência. Por trás da laboriosa e pouco
convincente construção teórica do instituto, transparece a busca de realização
do sonho dourado do capitalismo mais exacerbado e irresponsável: o investimento
sem risco, o lucro sem a eventualidade da perda. Pelo menos desde 1980,
detectamos a fragilidade da construção, principalmente com respeito à
"equiparação legal" do fiduciante ao depositário, e a denunciamos
assim:
O
neomercantilismo vigente, elevando à quase sacralidade os interesses do comércio,
e mui especialmente os do comércio de dinheiro, não se conforma com a aparente
inferioridade das garantias com que se pode forrar à inadimplência. E sonha
com a adoção de mecanismos legais tão poderosos, em termos de coação psicológica,
como os permitidos para forçar o depositário à restituição. (...)
Objeto
de preocupações maiores deve ser a tendência à equiparação de bens dados
em garantia. Está nesse caso a volumosa legislação sobre penhor rural e
industrial. Mas sobremaneira significativa, pelo largo uso que hoje se faz do
instituto e pela extensão do segmento populacional atingido, é a
responsabilização ao modo de depositário do fiduciante, nos contratos de
abertura de crédito com garantia de alienação fiduciária. É manifesto o
artifício a que recorre o legislador, com vistas a possibilitar essa estranha
equiparação. Há na "alienação" fiduciária uma forma de transmissão
de domínio que toca os limites da pura ficção.[14]
E,
páginas adiante, após análise da situação extremamente vulnerável em que
se colocava o fiduciante, acrescentávamos:
Tudo
isso, aliás, confirma o artificialismo, a que cedo aludimos, da "equiparação"
do fiduciante ao depositário. Tem-se, em verdade, uma ação de cobrança sob
ameaça de prisão, e sua consagração legislativa é atestado deveras eloqüente
do poderio que entre nós alcançaram as empresas que comerciam com dinheiro. Os
males que daí advieram e ainda advirão, como conseqüência do abuso do poder
econômico, possivelmente forçarão, em futuro próximo, o reexame da
constitucionalidade das disposições legais em foco.[15]
Essa
preocupação foi a mesma de muitos juristas e repercutiu intensamente na
jurisprudência. Um dos mais lúcidos magistrados que honraram a toga no Brasil,
o Ministro Adhemar Maciel, recentemente jubilado, proferiu voto lapidar no
Superior Tribunal de Justiça, profligando a ficção de domínio que se criou e
apodando-a de aberratio legis.
Demonstrou o grande juiz que o credor fiduciário não se torna verdadeiramente
proprietário, o que se pode verificar, inclusive, pelo fato de o eventual
desaparecimento do bem não conduzir à aplicação da parêmia milenar res
perit domino. Mostrou, mais, que a figura jurídica envolvida talvez melhor
se caracterizasse como penhor sine
traditio rei do que na qualidade artificiosamente elaborada de transmissão
da propriedade. Ainda segundo o
vigoroso voto, o que o Dec.-Lei 911/69 fizera fora o simples acréscimo de uma
garantia esdrúxula, sob ameaça de prisão civil, faltando o legislador a seu
compromisso com a ordem jurídica estabelecida e contrariando toda a nossa tradição
jurídica, que deita raízes profundas em todo sistema jurídico ocidental.[16]
No
momento em que se amplia o campo de incidência do instituto, convém que se
tenham presente essas objeções, reservas e suspeitas, que o acompanham desde
sua introdução no sistema jurídico nacional. Se cabe dizer, em louvor dessa
ampliação, que ela alargará ao mercado imobiliário as vantagens de uma
circulação mais dinâmica de capitais, como a verificada mercê da expansão
do crédito ao consumidor ligada à adoção da garantia fiduciária sobre móveis,
não é demais que se lembre a inquietação e os perigos que podem decorrer
dessa expansão para uma área extremamente sensível do ponto de vista social,
qual seja a da habitação.
10. O procedimento extrajudicial sob o ângulo da
constitucionalidade. Como,
de passagem, já ficou registrado, o legislador foi buscar em um dos mais lamentáveis
diplomas normativos do entulho autoritário
herdado aos governos militares -
o Dec.-Lei nº 70/66, que instituiu procedimento de execução hipotecária
extrajudicial - o modelo do caminho a ser seguido para a
efetivação da garantia, vale dizer, para a consolidação do domínio até então
resolúvel. E, não satisfeito com essa escolha infeliz da fonte de inspiração,
piorou consideravelmente o modelo, afastando não apenas a atuação judicial
(que o Dec.-Lei 70 já excluía), mas até mesmo a intermediação de um
terceiro desinteressado, que na aludida fonte era o chamado agente fiduciário. Na solução agora introduzida, nem isso ocorre:
trata-se de verdadeira execução de mão
própria, desencadeada e conduzida pelo próprio credor e conducente à
extinção não apenas do direito expectativo do devedor à reaquisição do domínio,
mas também do ius possidendi que o
contrato lhe assegurava.
Cabe
também observar que, na comparação com outros antecedentes legislativos, como
a cobrança por via semelhante do Decreto nº 58,
repetido no particular pela Lei nº 6.766/79 (quanto a imóveis loteados
prometidos à venda) e da Lei nº 4.591/64 (quanto a imóveis em construção),
o prazo de carência, a decorrer antes de tornar-se possível a intimação, é
de natureza legal, ao passo que as disposições ora introduzidas atribuem sua
fixação aos contratantes -
vale dizer, na prática, ao credor, dada a inelutável predominância do
contrato de adesão. Mais: nos casos comparados, trata-se de relação meramente
obrigacional, de relação de débito e crédito, ao passo que a nova legislação
envolve a transferência do domínio.
É
sumamente discutível a constitucionalidade da solução legal em foco. Se até
mesmo a do citado Decreto-Lei, menos drástica do que esta, continua a ser
duramente questionada, sem embargo da reiterada manifestação do Pretório
Excelso no sentido afirmativo,[17] a exacerbação da
unilateralidade e da desgarantia acrescem motivos para que se duvide da
conformidade do procedimento agora instituído ao disposto no art. 5º da
Constituição Federal, incs. XXXV, XXXVII, LIII, LIV e LV.
Com efeito, a entrega da iniciativa e condução do procedimento ao próprio
credor, sem a intermediação ao menos moderadora de terceiro desinteressado,
representa uma inaceitável regressão à autotutela. Escancara-se aí a opção
preferencial pela proteção ao capital, ao custo do sacrifício do princípio
da indeclinabilidade da jurisdição. O próprio credor faz notificar o devedor
e, sem outra intermediação que não a do Oficial do Registro, limitado ao
papel de portador da intimação, alcança a plenificação do seu domínio
sobre o imóvel, sem que ao devedor se abra qualquer possibilidade que não seja
a de pagar aquilo que o credor afirma
devido.
O
raciocínio segundo o qual o fiduciante -
como o devedor hipotecário, no caso de aplicação do Dec.-Lei 70 -
sempre terá ainda a oportunidade de questionar a regularidade do procedimento
quando do ajuizamento da ação de imissão na posse (agora incorretamente
crismada de reintegratória), tem
por si o constituir um dos esteios a que se escora a jurisprudência do Supremo,
no tema da execução hipotecária extrajudicial. Mas, ainda nessas coordenadas,
que não são exatamente as da nova situação tratada na Lei 9.514, o
argumento, venia permissa, prova
demais. A partir dele, a rigor, se levado às últimas conseqüências, em
qualquer espécie de litígio seria lícito a um dos envolvidos -
o mais poderoso - impor ao outro a solução que lhe parecesse
correta, certo que sempre restaria a possibilidade ao prejudicado de questionar
a legalidade desse procedimento quando se tratasse de tornar efetiva, no plano
dos fatos, dita solução. Ou, pelo menos, estaria o legislador autorizado a
construir procedimentos, para quaisquer categorias de relações jurídicas que
lhe parecessem comportar essa providência, que afastassem o controle judicial a
priori da legalidade das condutas. Vale dizer, estaria o legislador liberado
das peias que lhe impõem os comandos constitucionais da universalidade da
jurisdição, do contraditório necessário e do devido processo. Ora, a
efetividade do processo e dos direitos é meta por todos almejada, mas
certamente não a esse custo.
O
mesmo se pode dizer, de resto, quanto à sempre presente possibilidade de obter
o prejudicado a tutela jurisdicional em face de eventuais abusos, através dos
remédios processuais adequados. Essa possibilidade não afasta o fato central
de que uma situação potencialmente litigiosa (v.
g., para ficar na hipótese mais freqüente, divergência entre os
contratantes sobre o quantum do saldo
devedor) será, ainda que talvez temporariamente, solucionada mediante
autotutela, impondo um dos interessados ao outro, pelos seus próprios meios, o
que ele sustenta ser o seu direito. Claro, a todo tempo e em qualquer situação,
aquele que tem por ofendido ou ameaçado um interesse seu juridicamente
protegido, pode invocar a tutela jurisdicional; mas nem por isso se compreende
que o próprio legislador estimule e prestigie a atuação arbitrária,
precisamente da parte mais favorecida. O mesmo sistema jurídico que,
in genere, opõe a reforçada sanção penal ao "exercício arbitrário
das próprias razões" não deveria praticar a incoerência de autorizá-lo
com respeito a determinado contrato específico. De resto, o "direito à
jurisdição", assegurado a todos, é indisponível e inalienável,
integrando o núcleo central das garantias mínimas da cidadania.[18]
Essas
considerações impõem a conveniência de, no mínimo, abrir-se o debate da
constitucionalidade do procedimento de realização da garantia adotado pela Lei
9.514.
11. O procedimento de consolidação e o Código
de Defesa do Consumidor. À
luz do direito legislado nacional, já não cabe sequer discutir se os contratos
de crédito, bancário ou não, podem constituir relações de consumo colocadas
sob o especial regime da Lei nº 8.078/90. Enquadrando-se o mutuante na definição
legal de fornecedor profissional (no caso, de serviço) e o tomador do mútuo no
perfil do consumidor largamente traçado pela mesma Lei, a relação contratual
é de consumo. Desde longa data, acha-se solidamente afirmada, inclusive, a idéia
de que essa abrangência se alarga aos contratos de crédito imobiliário.
Graças
à definição ampla de seu campo de aplicação, a doutrina majoritária atual
considera que o CDC é aplicável tanto aos contratos de crédito direto ao
consumidor (crédito que permite ou se destina a aquisição de produtos e serviços)
quanto ao crédito denominado na Europa de crédito imobiliário (destinado a
aquisição de bens imóveis). Alguns doutrinadores, com o apoio da Confederação
Brasileira de Bancos, logo após a entrada em vigor do CDC, tentaram sem sucesso
defender a redução do campo de aplicação do Código protetivo do consumidor.
O CDC deixaria de ser aplicado aos contratos envolvendo crédito e aos contratos
bancários e financeiros em geral, face a uma interpretação restritiva do art.
3º do CDC. Essas tentativas não alcançaram a repercussão prática por elas
esperada e foram fortemente recusadas pela maioria da doutrina e após pela
jurisprudência. A mais recente jurisprudência brasileira considera os princípios
e algumas normas do CDC aplicáveis mesmo a contratos de leasing
e contratos envolvendo crédito a pequenos comerciantes e profissionais
liberais, em uma evolução exatamente no sentido inverso do defendido pela
Confederação de Bancos.[19]
Na
verdade, ainda que se argumente não se enquadrar o tomador de empréstimo no
conceito corrente, ordinário, de consumidor, e não ser o dinheiro, objeto do mútuo,
destinado ao consumo no sentido de destruição pelo uso,[20]
a definição legal particularizada pelo § 2º do art. 3º do CDC, não deixa
lugar algum à dúvida: os serviços a
que alude seu art. 2º incluem as atividades "de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária." De resto, a pá-de-cal sobre a
ensaiada polêmica é lançada pelo art. 52, que volta a referir-se a crédito e
financiamentos como objeto possível de consumo.[21]
Posta
essa premissa, emerge uma questão de vital importância no âmbito da presente
disquisição: os contratos de mútuo garantido por alienação fiduciária,
celebrados no âmbito do SFI, submetem-se à vedação invalidante do art. 53 do
CDC? Por outras palavras, aplica-se
à alienação fiduciária de imóveis a proibição de se cominar a perda total
das parcelas já pagas?
Temos
que a resposta só pode ser positiva. Conquanto posterior ao CDC, a Lei nº
9.514/97 não o derrogou nesse ou em qualquer aspecto. Na medida em que haja,
porventura, disposto por forma diversa daquela estabelecida no microssistema de
proteção ao consumidor, a lex nova há
de aplicar-se, sim, mas só às situações que não se achem sob a égide
deste, a saber, os contratos que não
sejam contratos de consumo, ocorrentes, e.
g., nas relações interempresariais.
Tenha-se
presente, antes de tudo, que o CDC, mesmo não sendo formalmente uma lei
complementar (até porque o próprio ADCT preferiu dar-lhe o nome de Código),
desempenha a correspondente função, detalhando e assegurando a aplicação de
normas constitucionais inarredáveis. Suas regras, como define o art. 1º, são
"de ordem pública e interesse social, nos termos do art. 5º, inc. XXXII,
170, inciso V, da Constituição Federal, e art. 48 de suas Disposições
Transitórias." O que substancialmente caracteriza a Lei Complementar,
posta pela doutrina em posição intercalar abaixo da Emenda Constitucional e
acima da Lei Ordinária, é a sua finalidade de, sem modificar o texto
constitucional, intermediar a sua aplicação quando ele mesmo não se baste a
esse fim.[22] Ainda sob a mesma
perspectiva, cabe anotar que, caso se pretendesse aplicar as regras da lei nova
a típicos contratos de consumo, haver-se-ia de esbarrar na manifesta
inconstitucionalidade delas, quando assim interpretadas, na medida em que
colidiriam, com as normas da Constituição Federal, art. 5º, XXXII, e art.
170, V.
De
outra banda, importa considerar, igualmente, que a Lei 9.514 não criou,
propriamente, um instituto jurídico novo. Ampliando e recombinando institutos
que o ordenamento já conhecia, não se pode dizer que haja introduzido nele
algum mecanismo que não se achasse contemplado no Código de Defesa do
Consumidor. A alienação fiduciária em garantia -
qualquer que viesse a ser sua evolução posterior à edição daquele Código -
estava nele regulada quanto aos aspectos respeitantes às relações de consumo,
e assim continua. O alargamento do campo de incidência desse direito real de
garantia, dado pertencente mais exatamente ao campo econômico do que ao jurídico,
não afeta o que a respeito dele dispunha a legislação anterior. Em sede
doutrinária, aliás, foi corretamente assinalado, antes do advento da Lei
9.514, que o instituto já consagrado e perfeitamente delimitado da garantia
fiduciária comportava extensão aos imóveis, com vistas, inclusive, aos
financiamentos para aquisição da moradia própria.[23]
Isso significa que a inclusão posterior dos bens imóveis no elenco dos que se
podem dar em alienação fiduciária não representou inovação substancial
significativa o suficiente para afetar a vigência das disposições legais que
regulavam in genere esse direito real
de garantia. De resto, prevista estava igualmente no CDC, e particularmente no
seu art. 53, a relação de consumo com objeto na aquisição de bens imóveis.
A conclusão que se impõe é no sentido de que a aplicação
literal dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514 não se poderá fazer nos casos em
que a operação imobiliária objeto do financiamento caracterize uma relação
de consumo. Em tal hipótese, ou essas
disposições devem ser interpretadas de modo a não conduzirem à perda total
das prestações já pagas (e sim apenas daquelas cujo valor corresponda ao dano
decorrente da ruptura do contrato e efetivamente apurado em concreto), ou as relações de consumo permanecem fora do âmbito de incidência
das aludidas regras jurídicas.
Poder-se-ia,
quiçá, objetar que essa solução levaria ao locupletamento do fiduciante. Sem
razão, entretanto, pois o argumento envolve uma inversão de perspectiva. O
financiado, isto sim, haveria de sofrer injusto prejuízo toda vez que, tendo
comprado determinado bem e pago parte do preço, viesse a ser privado assim da
propriedade do bem como dos valores que por ele pagou. Tal só se pode admitir
quando o mecanismo de compensação previsto no § 2º do art. 53 resulte em
igualdade ou em saldo favorável ao credor. Como agudamente observa uma emérita
especialista, o CDC não proíbe a contratação da cláusula penal em si, mas
veda, isto sim, as estipulações, inclusive as de cunho penal, que
desequilibrem a economia contratual em detrimento do consumidor, como aquela que
acarreta para ele onerosidade excessiva ("desvantagem exagerada", na
dicção do art. 51, inc. IV).[24]
A
interpretação integrada das normas legais confrontadas, assim, obriga o fiduciário
que houver promovido o leilão a repor ao fiduciante os valores arrecadados, na
medida em que excederem o proveito efetivamente auferido por aquele com a fruição
do bem e a multa acaso instituída. Essa obrigação lhe há de pesar
independentemente de haver a alienação ocorrido em primeiro ou segundo leilão
e do montante arrecadado.
12. A natureza contratual do mecanismo de
consolidação e a questão das benfeitorias.
Como en passant já ficou
referido, a Lei 9.514 encerra uma singularidade, para não dizer uma contradição:
impõe como cláusula obrigatória do pacto de alienação fiduciária (art. 24,
VII) a que dispõe sobre os procedimentos extrajudiciais de excussão da
garantia, embora estes se achem, por sua vez, minuciosa e rigidamente definidos,
em todos os seus aspectos, pela mesma Lei (art. 27).
Como
explicar-se o absurdo de obrigar à contratação em termos exaustiva e
previamente incluídos no próprio texto legal? A mens
legislatoris está bem clara: pensou-se, um tanto ingenuamente, que a inclusão
dessa cláusula no instrumento contratual teria o condão de prevenir e obstar
possível alegação futura de ilegalidade ou inconstitucionalidade, eis que o
devedor, ao menos formalmente, teria prestado ex
ante a adesão de sua vontade à adoção desse mecanismo legal. Mas a mens legis resultou
precisamente no contrário: como uma das mais elementares regras de hermenêutica
afasta que se presumam dizeres inúteis no texto normativo, a forma de realização
da garantia, conquanto prescrita em lei, tem de ser vista como uma estipulação
contratual. O que a sujeita por inteiro, também por isso, ao crivo das restrições
dos artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor, que vêm de ser
analisadas.
Cabe
ainda acrescentar, a esse respeito, que a talvez mais escandalosa das afrontas
ao aludido Código é a contida no § 4º do citado art. 27. Segundo essa
estipulação - a ser obrigatoriamente
"contratada", entre outras, pelo fiduciante - nega-se a este não apenas o direito de retenção
por benfeitorias (qualquer que seja sua classificação!), mas também o direito
a haver indenização por elas. Dificilmente
se poderia imaginar melhor exemplo de cláusula leonina ou, para ficar na
terminologia do CDC, abusiva. Como, em se tratando de contrato de consumo, ela se há de ter por não
escrita, ao credor fiduciário que tenha alcançado a consolidação de seu domínio
sobre o imóvel pesará, sim, a obrigação de indenizar benfeitorias necessárias
e úteis, e ao fiduciante se tem de reconhecer o direito de retenção até que
a receba, segundo o direito comum.
Acrescente-se
que, mesmo posto de lado esse caráter contratual da pretendida exclusão do
direito de retenção e da própria indenização de benfeitorias, a norma do
parágrafo sob comento não poderia prevalecer, por contrária a princípio
basilar de direito, que proíbe o locupletamento e o enriquecimento sem causa.
13. A "reintegração"
liminar. O delírio legislativo não se detém na
"contratação" de cláusula com conteúdo obrigatório e predefinido.
No art. 30, impõe ao juiz (já que, parece, aí admitiu atuação
jurisdicional) o deferimento de uma liminar, dita de reintegração, e que já
vimos ser, em verdade, de imissão na posse.
É,
pois, ao juiz que agora se pretende impor uma "decisão" de conteúdo
predeterminado, o que constitui a negação mesma da atividade jurisdicional. O
pressuposto de um semelhante provimento judicial seria, naturalmente, a
inadmissibilidade de qualquer defesa ou objeção do demandado. Mas, a ser
assim, não haveria lugar para qualquer procedimento em juízo.
Obviamente,
o comando legal deve ser entendido em termos. O juiz concederá ou denegará a
liminar, segundo o convencimento que formar sobre o direito do autor.[25]
Não é de excluir-se, de resto, que a liminar do artigo tenha sido concedida e
venha a ser cassada no curso do processo, à vista dos termos da defesa
oferecida pelo réu.
14. Reação do devedor à
consolidação: ação declaratória. Como
claramente visto ao ensejo da análise do art. 26, o procedimento extrajudicial
aí instituído não oferece qualquer oportunidade de defesa ou resistência por
parte do réu. Só se lhe abre a opção entre purgar a mora e deixar fluir em
branco o prazo assinado. Entretanto, pode suceder que ele tenha matéria
relevante a opor à pretensão do credor. Já se viu a freqüência com que a prática
do foro registra a divergência entre os interessados quanto ao cálculo do
valor efetivamente devido e vencido. Também outras situações podem
apresentar-se, capazes de afastar a pretensão, como, v.
g., a inobservância do prazo de carência que haja sido contratualmente
estipulado. Não se olvide, outrossim, o que ficou dito quanto à razoável
alegação de inconstitucionalidade ou de ilegalidade do procedimento em face de
outros diplomas legais, notadamente o CDC.
Como
o procedimento em causa transcorre em sede extrajudicial, não há como possa o
devedor apresentar qualquer alegação de natureza defensiva, ou objeção ao
direito invocado pelo credor. Caso se abalance a sustentar a
inconstitucionalidade ou ilegalidade do procedimento - pelas razões que antes apontamos ou por
outras -
não se lhe oferece outro caminho que não o da ação declaratória negativa,
para transferir ao âmbito judicial o debate que de outro modo não se poderia
abrir. Parece recomendável, em tal emergência, que o autor da declaratória
postule antecipação de tutela, para deter o seguimento da atuação
extrajudicial do credor, pois de outro modo a demora na tramitação do
processo, por menor que seja, lançará o seu desfecho para além da data em que
o fiduciário alcançará o registro da consolidação do seu domínio. Sirva
assinalar que a carga declarativa da sentença pretendida não constitui óbice
à concessão dessa antecipação: a hesitação da doutrina quanto ao ponto
acha-se já ultrapassada, admitindo-se hoje, sem restrições, o adiantamento da
eficácia da sentença declaratória e da constitutiva.
Importa
ter presente que a sentença declarativa, valendo “como simples preceito”,
na dicção do antigo Código Nacional de Processo Civil, nem por isso há de
ser vista como incapaz de produzir conseqüências concretas, palpáveis, no
mundo físico. À parte a clareza jurídica, que é um dado objetivo (embora
corresponda, no espírito dos interessados e de terceiros, a um estado subjetivo
de certeza, vale dizer, de supressão de dúvidas), a sentença é autorizativa de condutas com ela compatíveis. Os figurantes da relação
processual devem adotar comportamento de obediência ao preceito. Diversamente
do que se dá com a condenação, que habilita o interessado ao exercício de
uma nova atuação em juízo (ação de execução), a mera declaração
judicial permite à própria parte
vencedora a adoção da conduta correspondente ao direito declarado.[26]
Por certo, a declaração em si não pode
ser antecipada; a idéia de uma antecipação da certeza jurídica, vale
dizer, um “acertamento provisório da relação jurídica” não se compadece
com a boa lógica.[27]
Contudo, os efeitos práticos que dela emanariam são passíveis de
adiantamento, como, v. g., a participação
do autor em deliberação social, antes mesmo de ser declarada, como objeto
específico da demanda, a sua condição de sócio.[28]
Merece
lembrada, a propósito, uma precisa e oportuna lição: o que se antecipa não
é a eficácia jurídico-formal da sentença, mas os seus efeitos práticos, a
sua eficácia social.[29]
Os desdobramentos que se desenvolvem no plano dos fatos é que se tomam em
conta, não aquela eficácia que “se passa no mundo dos pensamentos”.[30]
Contempla-se aí a “regra jurídica como conduta humana”, o “Direito
vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de
conduzir-se”.[31] E, vista assim, a eficácia
de qualquer sentença – inclusive a das declaratórias e constitutivas – é
perfeitamente passível de antecipação, porque todas elas produzem repercussões
sensíveis no mundo dos fatos.[32]
15. Reação do devedor à
consolidação: ação consignatória. Caso o devedor discorde do saldo devedor calculado pelo credor por ocasião
da intimação promovida por este junto ao ofício imobiliário, e por algum
motivo não se queira servir de um remédio mais enérgico, pode submeter ao
juiz competente (em regra, o da situação do imóvel) o seu próprio cálculo,
mediante pedido de consignação em pagamento. Com efeito, esse é o remédio
processual adequado, quando o devedor deseja liberar-se da obrigação e o
credor está a exigir quantia maior do que a devida. E com maior razão se há
de admitir em caso como o cogitado, pois o procedimento extrajudicial não
oferece ensejo algum à discussão do quantum
debeatur.
Sendo
esse o caso, não se faz necessária a postulação de tutela antecipada, pela
singela razão de que a simples realização do depósito em ação consignatória
tem o condão de sustar qualquer efeito da mora. Com efeito, sempre esteve
presente no direito nacional a norma segundo a qual, efetuado o depósito, e até
que se julgue de sua aptidão para substituir o pagamento, tudo se passa como se
a dívida estivesse satisfeita. Na espécie, ocorre uma antecipação natural da eficácia da sentença, decorrente da norma
do art. 891, dado que a eficácia é do próprio depósito. A suspensão ex
vi legis de qualquer efeito da mora
solvendi, portanto, independendo de requerimento algum do interessado e prolongando-se até
a eventual declaração de improcedência da demanda (ou tornando-se definitiva
na de procedência), afasta a necessidade e, pois, o cabimento dessa postulação.
Ausenta-se dela o interesse processual.
16. Reação do devedor ao
pedido de "reintegração". Se o fiduciário já obteve a consolidação do seu domínio e o
respectivo registro, estando já a promover a impropriamente denominada
"reintegração na posse" do art. 30, estará o fiduciante em posição
de réu na correspondente ação. Caber-lhe-á, então, oferecer qualquer das
modalidades de resposta permitidas pelo direito processual civil vigente - contestação, exceção e reconvenção.
Posta
de lado a questão da inadequação do rito, já examinada, e que pode ser
levantada em preliminar, a argüição central a ser formulada será,
obviamente, a de nulidade do título em
que assenta o pedido do autor, a saber, a consolidação registrada no ofício
competente. Impugnará o demandado a validade do procedimento de consolidação,
pelos mesmos fundamentos que invocaria, na situação antes já analisada, em ação
declaratória de nulidade.
Dita
nulidade pode ser argüída incidentalmente, apenas como argumento defensivo,
sem pedido de declaração autoritativa dela, caso em que também a sentença
manifestar-se-á sobre o ponto incidenter
tantum, valendo a resposta judicial quanto ao ponto apenas como fundamento,
como razão de decidir, sem que possa revestir da autoridade de coisa julgada
(CPC, art. 469). Por isso mesmo, recomendável é que o réu se utilize da
reconvenção ou da ação declaratória incidental, para pedir que o juiz
pronuncie, quanto à invalidade do ato antecedente, sentença
no mais estrito sentido, traduzindo a vontade concreta da lei quanto ao tema
e recobrindo-se da autoridade da res
iudicata (CPC, art. 5º).[33]
Assim, a resolução da questão prejudicial da validade do procedimento extrajudicial de
consolidação, tanto quanto a matéria do próprio pedido principal do autor,
adquire caráter autoritativo.
Pode
suceder que o demandado se conforme ao desfazimento do negócio, dispondo-se a
entregar a coisa, mas alegue crédito contra o autor -
particularmente, o crédito por restituição das quantias que haja pago, ou da
parte delas que o autor deva repor em razão do disposto no art. 53 do CDC. A
cobrança desse valor, líquido ou a ser liquidado, pode igualmente ser
encaminhada pela via reconvencional.
Pode
dar-se, outrossim, que o réu não se oponha à entrega da coisa, nem ao cálculo
feito pelo fiduciário, admitindo o desfazimento do negócio, mas tenha feito
nela benfeitorias indenizáveis. De acordo com o que ficou antes exposto, essa
matéria enseja defesa do demandado, fundada no direito de retenção. Como não
se trata de procedimento executório stricto
sensu, essa alegação não precisa ser veiculada pela via dos embargos,
podendo constituir matéria da contestação.
(Junho de 2000)
*
Conferência proferida no I Simpósio Nacional de Direito Bancário, São
Paulo, julho de 2000.
[1]
Fenômeno semelhante já se havia verificado em relação à garantia fiduciária
representada por bens móveis, com a edição do Dec.-Lei nº 911/69.
Detectou-o com precisão Carlos
Alberto Alvaro de Oliveira, "Procedimento e ideologia no Direito
Brasileiro atual", na Revista
AJURIS, nº 33, p. 79.
[2]
Essa duplicidade de mecanismos legais, cada qual voltado a um segmento
definido de compradores, foi apontada como significativo avanço por Melhim
Namem Chalhub, "Alienação fiduciária de bens imóveis",
in Revista de Direito Imobiliário, nº
45, janeiro de 1999.
[3]
A opinião, aliás, é de um fervoroso defensor da nova Lei: Décio
Antônio Erpen, "Alienação fiduciária imobiliária e
hipoteca", no Informativo Semanal
COAD nº 08/99, p. 120.
[4]
Sobre isso, a fonte mais divulgada entre nós é o livro de Philip
H. Pettit Equity and the law of trusts. A toda evidência, essa concepção não
é compatível com os princípios que governam o Direito Privado nos sistema
jurídicos de ascendência românica, ou romano-germânica.
[5]
Como alhures sustentamos, a posse considerada em si mesma é mero fato, e não
direito (não cabendo, pois, discutir se real ou pessoal): Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, tomo III, p.
335 e s. Entretanto, o jus possidendi,
o direito à posse, pode ser pessoal (locação, por exemplo) ou real (v.
g., alienação fiduciária).
[6]
Tem-se a clara impressão de um freudiano lapsus
calami: o legislador parece haver desconfiado da solidez do terreno que
pisava, isto é, dos limites constitucionais em que atuava, transferindo às
partes o encargo de assentar cláusula
obrigatória, de conteúdo predeterminado, como que a admitir ex
ante a insuficiência (ou ineficácia) da norma legal... Adiante, no
texto, será necessário retornar ao tema.
[7]
Cf. Eduardo Talamini, Tutela
monitória, p. 62 e s.(São Paulo, 1997), com notícia da controvérsia
que o tema ensejou na Itália..
[8]
Nesse sentido, STJ, 4ª T., REsp 13.416-0-RJ, Rel. Min. Sálvio de
Figueiredo, RSTJ 4(37)/428. Na
doutrina, no mesmo rumo, Araken de
Assis, Comentários ao Código
de Processo Civil, vol. VI, p. 422 (Rio de Janeiro, Forense, 1999).
[9]
O texto legal, que foi detalhista ao ponto de acrescentar novo caso de
registro - o do
contrato de alienação fiduciária -
à enumeração do art. 167 da Lei de Registros Públicos, olvidou-se,
entretanto, de acrescer à casuística o da consolidação do domínio, que
é um novo
registro.
[10]
Sobre a permanência da pretensão de direito material à imissão e da
correspondente ação no quadro legal vigente, embora sem procedimento
especial, cf. nossos Comentários ao Código
de Processo Civil, vol. VIII, tomo III, p. 27, nº 15 (7ª ed., Rio,
1995); Ovídio Baptista da Silva,
"A eficácia executiva da ação de imissão de posse", na Revista de Processo, nº 2, p. 102; Gildo
dos Santos, "Imissão na posse. Aspectos processuais", no
volume Posse e propriedade, org.
por Yussef Said Cahali, p. 443
(São Paulo, 1987); Herondes João de
Andrade, "Ação de imissão na posse", na Revista
Brasileira de Direito Processual, nº 22, p. 51; Galeno Lacerda, O novo
direito processual civil e os feitos pendentes, p. 42 (Rio, 1974) --
entre outros.
[11]
Por todos, cf. Carlos Alberto Carmona,
Arbitragem e processo, p.
29, nº 12 (São Paulo, 1998).
[12]
Como demonstrou Carmona, obra
cit., p. 86-7, o art. 51, inc. VII, do Código de Defesa do Consumidor
permanece em plena vigência, o que torna irrelevante a péssima redação
do § 2º do art. 4º da Lei 9.307, resultante de uma infeliz subemenda
introduzida na Câmara dos Deputados. Substancialmente no mesmo sentido, Nelson
Nery Jr. e Rosa Maria Andrade
Nery, Código de Processo Civil
comentado, p. 1386, nota 3 (3ª ed., São Paulo, 1997).
[13]
Sobre essa limitação, cf. nosso artigo "Alienação fiduciária de
coisa fungível: um grave equívoco", na Revista
dos Tribunais, nº 617, p. 16.
[14]
Comentários, vol. e tomo cit., p.
151-2, nº 137.
[15]
Ib., p. 171, nº 151.
[16]
O voto, que prevaleceu por maioria, foi proferido no julgamento do RHC
4288-5-RJ, pela 6ª T. do STJ, em 13.03.95, ac. publ. no DJU de 19.06.95. Depois de alguma vacilação, com aparente inclinação
pela tese desse voto, acabou a Corte por submeter-se ao poderoso influxo da
jurisprudência do Supremo, em sentido oposto.
[17]
V. g., ainda recentemente, RE
223075, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, em 23.06.98, ac. un.: "EXECUÇÃO
EXTRAJUDICIAL. DECRETO-LEI Nº 70/66. CONSTITUCIONALIDADE. Compatibilidade
do aludido diploma legal com a Carta da República, posto que, além de
prever uma fase de controle judicial, conquanto a
posteriori, da venda do imóvel objeto da garantia pelo agente fiduciário,
não impede que eventual ilegalidade perpetrada no curso do procedimento
seja reprimida, de logo, pelos meios processuais adequados." (In DJU
de 06.11.98, p. 22). No mesmo sentido, RE 240311/RS, 1ª T., DJU
de 29.10.99, p. 23; RE 148872/RS, 1ª T., DJU
de 12.05.2000, p. 27. Sem
embargo da constância da orientação do Supremo, a freqüência com que a
matéria volta ali a debate indica a atualidade da controvérsia nas instâncias
ordinárias.
[18]
Vale conferir, sobre o tema, a lição de Rogério
Lauria Tucci e José Rogério
Cruz e Tucci, Constituição de
1988 e processo, p. 12 (São Paulo, 1989).
[19]
Cláudia de Lima Marques, "Os
contratos de crédito na legislação brasileira de proteção do
consumidor, na Revista Direito do
Consumidor, nº 18, p. 55 (artigo iniciado à p. 53). A ilustre
especialista expõe essa idéia também no seu livro Contratos
no Código de Defesa do Consumidor, p. 141-7 (2ª ed.). No mesmo
sentido, Nelson Nery Jr., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 302-3 (Rio, 1991); Maria
Antonieta Zanardo Donato, Proteção
ao consumidor - conceito e extensão,
p. 131 ( São Paulo, 1993); Antonio
Janyr Dall'Agnoll Jr., "Aplicação do CDC nas atividades bancárias",
na Revista de Direito Bancário, ano I, nº 1, p. 450 e s. (iniciado à
p. 437) -
entre muitos outros.
[20]
Esses os principais argumentos opostos pelos defensores da tese restritiva,
notadamente Arnold Wald, "o
direito do consumidor e suas repercussões em relação às instituições
financeiras", na Revista dos
Tribunais, nº 666, p. 7 e s.
[21]
Particularmente sobre esse ponto, Eduardo
Arruda Alvim et alii,
Código do Consumidor
comentado, p. 257 e s. (2ª ed., São Paulo, 1995).
[22]
Pontes de Miranda, Comentários
à Constituição de 1967, t. III, p. 136 e 149-51 (São Paulo, 1967).
[23]
Cf. Mário Júlio de Almeida Costa,
"Alienação fiduciária em garantia e aquisição de casa própria",
na Revista dos Tribunais, nº 612,
p. 11 e s.
[24]
Cf. Cláudia Marques, "Os
contratos de crédito..." cit., p. 64.
[25]
Nesse sentido tem-se orientado a jurisprudência mesmo em matéria de
despejo, quando autorizado em caráter liminar -
mesmo sendo essa uma situação em que melhor se justifica o permissivo
legal: o autor busca a retomada do
que é seu, em situações nas quais o término da relação contratual está
bem claro e mediante caução.
[26]
“...sucessivamente à procedência de uma ação declaratória, há o
direito de haver comportamento em conformidade com o que foi decidido. Esse
comportamento está ao abrigo, precisamente, da eficácia da sentença
declaratória.” (Arruda Alvim, Tratado de direito processual civil, v. I, p. 429, arrematando lúcido
raciocínio desenvolvido desde a p. 419).
[27]
Parece não havê-lo levado em conta Theodoro
Jr., “Tutela antecipada”, na
Revista de direito processual civil,
nº 4, jan.-abr. 1997, p. 45.
[28]
Certo, João Batista Lopes,
“Tutela antecipada...” cit., p. 211: “Possível será, em tese,
antecipar alguns efeitos práticos decorrentes da tutela declaratória, mas
não a própria declaração.”
[29]
Cf. Teori Albino Zavascki, Antecipação
da tutela, p. 48; id., “Eficácia
social da prestação jurisdicional”, na Revista
da informação legislativa, nº 122, p. 291.
[30]
Pontes de Miranda, Tratado
de direito privado, t.
1, p. 16-17.
[31]
Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 112-113 (7ª ed., São Paulo,
1980).
[32]
Assim conclui, com segurança, Zavascki,
Antecipação... cit., p.
84-85. No mesmo sentido, com igual
ou diversa fundamentação, Bedaque,
Tutela cautelar... cit., p.
342-345; Batista Lopes, “Tutela
antecipada...” cit., p. 211; Marinoni,
“A tutela antecipatória
nas ações declaratória e constitutiva”, na coletânea citada de Teresa
Wambier, p. 277 e s.(iniciado à
p. 267); Nelson Nery Jr., “Procedimentos e tutela antecipatória”
cit., 395-396 (item 2.1.); Teresa
Wambier, “Da liberdade do juiz na concessão de liminares”, no
citado volume por ela organizado, p. 541 (iniciado à p. 483); Kazuo
Watanabe, “Tutela
antecipatória e...” cit., p. 35; Ovídio
Baptista, “A ‘antecipação’ da tutela...” cit., p. 131 e s.
Os autores, em minoria, que sustentam opinião oposta fazem-no por não
distinguirem a antecipação de efeitos da antecipação da própria declaração:
assim, Araken de Assis, “Antecipação
de tutela” cit., p. 22; Mancuso,
“Tutela antecipada...” cit., p. 184 (§ 4º).
[33]
Sobre essa distinção, cf. A. F. Fabrício,
A ação declaratória incidental, passim, especialmente p. 57 e s. (2ª
ed., Rio, 1995), e José Carlos
Barbosa Moreira, Questões
prejudiciais e coisa julgada, passim (Rio, 1967).
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